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Com a obrigação de atestar óbitos, médicos do Samu-SP temem deixar a cidade sem assistência

Especialistas avaliam como melhor solução a criação de uma equipe de saúde especialmente para assumir a função

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São Paulo

​À meia-noite de sexta-feira (10), dez médicos das equipes de SAV (Suporte Avançado à Vida) do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) da cidade de São Paulo ganharam a atribuição extra de atestar as mortes naturais, sem assistência e as causadas (ou suspeitas) pela Covid-19 ocorridas fora do ambiente hospitalar. A medida também vale para o Grau (Grupo de Resgate e Atenção às Urgências e Emergências).

Para os hospitais não há mudanças, pois a declaração de óbito fica a cargo do médico que assiste o paciente. Os casos de mortes violentas ou suspeitas continuam sendo atendidos pelo IML (Instituto Médico Legal).

Conforme a Folha adiantou, a atribuição é baseada em decreto do governo de São Paulo publicado no dia 20 de março e resolução da Secretaria de Estado da Saúde, e terá validade durante a pandemia causada pelo novo coronavírus.

O resultado das primeiras 24 horas com a nova atribuição só reforçou o que os funcionários do Samu-SP já temiam e denunciaram à reportagem: desassistência nos casos de alta complexidade.

Nas 24 horas iniciais, os médicos das equipes das regiões da Vila Olímpia e USP (zona oeste) assumiram o trabalho. Gradativamente, as demais serão incorporadas.

A Folha teve acesso ao conteúdo discutido nas reuniões entre os funcionários do Samu-SP e também às conversas entre os médicos.

Entre as queixas, ocorrências de urgência e emergência que mereciam a atenção de médicos ficaram sem atendimento ou foram atendidas por auxiliares de enfermagem. Duas delas, que não foram atendidas, ocorreram na zona oeste e os médicos estavam empenhados nos atestados de óbitos.

Outra reclamação foi em relação à central de regulação do Samu-SP, que estava destreinada e sem saber o que repassar às equipes. Por exemplo, funcionários ordenaram às equipes que fizessem declaração de óbitos de mortes suspeitas, o que cabe ao IML.

Somado a isso, espera de quase seis horas para atestar óbitos (um funcionário chegou a mencionar que havia uma fila na tela do computador do Samu aguardando atendimento), tempo gasto de três horas para a realização de todo o procedimento, incluindo as longas distâncias —uma das ambulâncias rodou 280 km em 24 horas; a outra, em metade deste tempo percorreu 110 km para apenas um dos casos.

O Samu-SP pode ser acionado pelas famílias ou a polícia através do 192. O despacho da ambulância é feito pela central de regulação. Na SAV, além do médico, estão um enfermeiro e o condutor, que também é socorrista.

Antes, a função de declarar óbitos de mortes naturais e sem assistências ficava a cargo do SVO (Serviço de Verificação de Óbitos). Os médicos do serviço darão suporte telefônico aos profissionais do Samu no caso de dúvidas.

Equipe do Samu presta atendimento a uma paciente que passou mal na região da Lapa, zona oeste de SP
Equipe do Samu presta atendimento a uma paciente que passou mal na região da Lapa, zona oeste de SP - Lalo de Almeida - 20.abr.2018/Folhapress

O patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP, explica que no SVO há um grande potencial de contaminação pelo novo coronavírus.

“A forma de fazer autópsia exige equipamentos de proteção que não são encontrados em muitas salas de autópsia do mundo. Dentro do atual contexto, torna-se impraticável a realização da autópsia no SVO”, afirma.

As equipes avançadas do Samu-SP terão que dar conta do atendimento diário dos casos de alta complexidade —onde há risco imediato de morte—, dos atestados de óbito e das transferências de pacientes com Covid-19 para os hospitais de campanha e remoções daqueles que estão nestes hospitais e precisam ser levados a outros serviços por causa da gravidade do quadro.

“Pelas estimativas que nos foram passadas, apenas os óbitos que já ocorrem habitualmente e recebem atestado através do SVO já são em número suficiente para que todas as unidades de suporte avançado fiquem empenhadas 24 horas por dia fazendo apenas atestados. Isso sem computar as mortes decorrentes do coronavírus, que aumentarão esta demanda. O mais importante de tudo é que faltarão unidades de suporte avançado para atender casos graves”, afirma um dos profissionais do serviço que preferiu não se identificar.

Para Saldiva, o argumento dos médicos do Samu tem lógica. “O ideal seria que houvessem equipes de saúde fora do Samu treinadas para executar esse serviço. Eu convocaria aqueles que não podem estar na linha de frente e faria um corpo de voluntários, diz Saldiva.

O ato de atestar óbito é complexo e deve ser feito obrigatoriamente por um médico. “Tem o deslocamento inicial, a paramentação, o exame do cadáver (aqui o despimos, examinamos frente, verso, olho, boca e demais orifícios) e da cena para descartar as possibilidades de morte suspeita e violenta, coletar material biológico (swab nasal) em caso de suspeita de Covid-19, tratar o corpo, desparamentar, conversar com a família e preencher o atestado de óbito", explica um dos médicos.

A autópsia verbal só deverá ser preenchida se o médico não conseguir identificar a causa da morte.

Também caberá ao médico do Samu orientar a família sobre como proceder dali para a frente —inclusive para a descontaminação da cena após o serviço funerário retirar o corpo do local—, entregar o exame de swab colhido no PS Bandeirantes para análise e retornar à base.

“O que me preocupa é que o número insuficiente de ambulâncias avançadas resultará num grande número de cadáveres nas residências, sem atestado nem destinação certa por períodos prolongados e apenas com o atestado a família consegue acionar o serviço funerário para realizar o transporte do corpo”, diz outro médico do Samu.

Mario Thadeu Leme de Barros Filho, advogado e professor do Eixo de Humanidades da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein explica que pelo código de ética médico o profissional tem autonomia para tomada de decisão e contrariar o decreto.

O advogado recomenda anotar na declaração de óbito que não assistiu o paciente e informar no item relativo à causa da morte que se trata de óbito sem assistência médica, não colocando, portanto, nenhum diagnóstico.

“A solução seria deslocar equipes médicas do próprio SVO para fazer esse serviço. Minha principal crítica a essa política pública é a aparente má alocação de recursos, como o descolamento dos médicos do Samu a outras atividades e deixar desassistido o serviço que é primordial, essencial e fundamental. Os socorristas do Samu buscam salvar vidas”, afirma Barros Filho.

Todos as declarações de óbito serão revisadas pela Ceinfo (Coordenação de Epidemiologia e Informação) da Secretaria Municipal da Saúde.

Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde informa que, nas primeiras 24h de fornecimento de declarações de óbitos, o Samu foi acionado para nove ocorrências, sendo dois atestados de Covid-19, duas de mortes naturais por outros motivos e cinco de mortes suspeitas.

A pasta destaca que trata-se de um novo protocolo de atendimentos, dentro de um quadro de excepcionalidade causado pela pandemia de Covid-19. Por isso, caso seja necessário, poderão ser feitos ajustes no trabalho operacional.

Vale ressaltar que cada cidade tem suas peculiaridades, seja pelo tamanho, demografia e estrutura dos serviços municipais, entre outros aspectos. No entanto, medidas que eventualmente se mostrarem exitosas poderão ser observadas para serem adaptadas à realidade da capital.

Pela resolução, os casos de mortes violentas ou suspeitas continuam sendo atendidos pelo IML.

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