Descrição de chapéu

No Brasil, o poder tem cor

Ações afirmativas são fundamentais para derrubar apartheid institucional

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Luiz Augusto Campos

Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa).

As imagens da audiência judicial de Mariana Ferrer chocaram o Brasil, não apenas pelo seu resultado (em que o acusado foi absolvido por “estupro não intencional”), mas também pela sua composição.

Nela, vemos quatro homens brancos deliberando sobre a veracidade das acusações contra outro homem branco feitas pela única mulher da imagem. Este retrato só não é mais expressivo de nossas desigualdades porque falta a ele uma das suas dimensões estruturais: a raça.

A gigantesca maioria das audiências de custódia e julgamentos criminais no Brasil é composta de juízes, promotores, defensores, advogados e jurados brancos, como na audiência de Ferrer, mas os acusados quase sempre são jovens negros e negras.

Tal apartheid institucional não é restrito ao Poder Judiciário. O Estado brasileiro como um todo é gerido basicamente por homens brancos de meia idade e nascidos em classes abastadas. Eles são a maioria absoluta dentre os juízes, médicos, diplomatas, professores universitários, oficiais das Forças Armadas etc..

No mercado privado a lógica não é diferente: as decisões que definem o futuro de nossa economia são tomadas por empresários com perfil similar.

Ainda assim, os alvos principais das decisões estatais e privadas são pretos ou pardos. São esses grupos os mais atingidos pelas políticas de policiamento e Justiça, os usuários dos sistemas públicos de saúde e educação básica, a maioria da força de trabalho e dos consumidores.

Portanto há uma nítida divisão racial do trabalho político no país: cabe aos homens brancos de meia idade e de classe alta produzir as diretrizes que determinam os destinos de homens negros e, sobretudo, mulheres negras.

Pode-se contra-argumentar que tal cenário é produto mais das nossas desigualdades de classe do que estritamente raciais. A rigor, nunca existiu no Brasil democrático nenhum provimento legal que impedisse negros de prestar concursos públicos ou de concorrer a eleições, por exemplo. Temos até alguns poucos exemplos históricos de grandes nomes negros na política, na academia e em outras esferas de prestígio e poder.

É bem verdade também que nossas desigualdades socioeconômicas são abissais e oscilaram pouco durante nossa história. Do mesmo modo, as classes subalternas no Brasil costumam ter todas as cores, o que poderia servir como evidência adicional do caráter mais econômico que racial de nossas desigualdades.

Contudo essa interpretação é incompleta. Ela ignora que brancos pobres e com baixa escolaridade costumam ter mais chances de ascender socialmente do que pretos e pardos igualmente desfavorecidos.

Segundo dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2015, 37% dos homens pretos e pardos brasileiros saíram das classes baixas para classes médias ou altas. Já dentre os brancos, esse percentual foi de 48%. Logo, negros não apenas são maioria dentre os pobres como também têm menos chances de sair da pobreza.

Note-se que esse problema está também no topo da pirâmide social. Enquanto 64% dos autodeclarados brancos nascidos em classes altas conseguem permanecer nessas classes, apenas 43% dos negros que alcançam tais estratos permanecem neles. Mesmo pretos e pardos que experimentaram alguma ascensão social têm suas condições sociais ameaçadas.

Por que brancos e negros, com origens e recursos sociais similares, têm oportunidades tão díspares?

Embora a resposta seja o racismo, ainda é comum uma compreensão limitada desse conceito. Mais do que fruto de atitudes e intenções individuais localizadas, o racismo brasileiro opera silenciosamente para reproduzir a própria estrutura social que o sustenta.

A imagem de uma pessoa negra sendo julgada por brancos se repete nas escolas privadas de alto desempenho, nas quais estudantes de elite aprendem silenciosamente que negros estão restritos às tarefas de limpeza e segurança, tal qual nos condomínios em que moram.

Ela se repete no cotidiano dos nossos hospitais, nos quais médicos negligenciam o atendimento de pacientes negros por vê-los como mais resistentes a dor.

Ela está no dia a dia das forças de segurança, nas quais oficiais brancos podem colocar em risco extremo seus soldados negros porque estes creem que a farda os impede de serem “confundidos com criminosos”.

Finalmente, ela está nos partidos políticos que preferem investir em candidaturas (quase sempre brancas) que já se provaram “boas de voto” no passado, impedindo novos atores (negros) de entrarem em cena.

O Brasil demanda políticas urgentes para reduzir nossas desigualdades socioeconômicas. No entanto elas não devem ser cegas ao fato de que pessoas brancas não apenas costumam sair na frente na competição social como também levam vantagem em relação a pretos e pardos com a mesmíssima origem de classe.

É justamente por isso que ações afirmativas raciais são fundamentais, tanto no ensino superior, quanto em outras esferas como concursos públicos ou seleções para empresas privadas.

Elas não apenas ajudam a mitigar a desigualdade de oportunidades entre brancos e negros como também permitem que estes possam ocupar posições de poder, tornando nossa democracia minimamente representativa da sociedade.

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