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Izabela Moi

O vírus da desigualdade e os 10 anos da Agência Mural

Iniciativa surgida em parceria com a Folha para cobrir periferia com olhar local cresceu e lança braço em Salvador

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Izabela Moi

Izabela Moi, 50, jornalista, é cofundadora e diretora executiva da Agência Mural de Jornalismo das Periferias.

Há 10 anos, em 24 de novembro de 2010, o blog Mural entrava no ar nesta Folha para cobrir as áreas menos cobertas da região metropolitana: as suas periferias, onde vive a maior parte da população da Grande São Paulo.

A parceria com este jornal foi selada desde o início pela confiança da troca: nós, na hospedagem que nos daria desde o início a visibilidade do jornalismo profissional praticado há quase 100 anos, o jornal com um conteúdo inédito trazido por profissionais que conhecem a realidade sobre a qual falam –os correspondentes locais.

Nós crescemos, sempre acreditando na missão que nos guia: reduzir as lacunas de informação sobre as periferias e com isso os estereótipos sobre elas. Em 2015 nos tornamos a Agência Mural de Jornalismo das Periferias.

Hoje, em 2020, nossa missão está mais viva do que nunca, principalmente em um ano que não está sendo fácil para quem vive nas franjas das cidades.

A explosão da pandemia, que causou mais de 1,3 milhão de mortes no mundo e cerca de 170 mil óbitos oficialmente registrados no Brasil, acelerou a pressão sobre sistemas de saúde de todos os países. Ela também ligou um holofote sobre as desigualdades e os impactos de pesos diferentes que esta crise sanitária causou. Impactos globais, nacionais, na nossa região, no nosso bairro.

Aqui na Grande São Paulo, foram cerca de 23 mil mortes declaradas até o início de novembro, a maior parte delas concentrada entre os mais pobres, mais expostos ao contágio porque não puderam fazer quarentena, não puderam parar de trabalhar, porque tiveram de pegar transporte lotado, porque mesmo em casa, com famílias numerosas, acabaram sendo contaminados.

“Entre os distritos com mais mortes, todos estão localizados nas periferias – também são áreas mais populosas. Sapopemba, na zona leste, Brasilândia, na zona norte, e Grajaú, na zona sul, sozinhos somaram 1.044 mortes confirmadas”, atestava uma de nossas reportagens de outubro. “Mais perdas do que todas as cidades da Grande São Paulo, exceto Guarulhos. No Brasil, só 16 municípios tiveram mais perdas.”

Além disso, 75% dos mais pobres no país são negros. Na capital paulista, os distritos com maior população negra concentram os bairros com o maior número de óbitos –Sapopemba, Brasilândia, Grajaú, Jardim Ângela, Capão Redondo e Jardim São Luís.

“Em contraponto, os dois distritos com menor proporção de população negra entre os habitantes, Alto de Pinheiros (8%) e Moema (6%), registram os menores números de vítimas, com 110”, explicou nossa reportagem.

E neste ano tão “longo”, em que o impacto da pandemia não atinge apenas a saúde das pessoas (com um sistema público do qual depende 75% da população no país), e as desigualdades socioeconômicas impõem um preço mais caro em várias facetas do seu cotidiano, vivemos todos os dias a exigência de nossa audiência. A informação relevante pode salvar vidas.

Em 2020, a Agência Mural contou as histórias dos estudantes das escolas públicas que ficaram sem estrutura para seguir suas aulas à distância, os jovens que se preparam para o Enem sem apoio dos cursinhos populares, os trabalhadores informais, essenciais, ambulantes que não puderam parar e tiveram que enfrentar os coletivos cheios, os catadores de materiais reciclados que ficaram fora da lista do auxílio emergencial, a sobrecarga de trabalho dos sepultadores.

Tentamos não deixar nada escapar. Com equipe fixa e rede de correspondentes locais, nós trabalhamos juntos, de ouvidos e olhos atentos, para responder as principais dúvidas dos nossos vizinhos, amigos, familiares. Inventamos até um podcast para ser distribuído por Whatsapp: era preciso enfrentar a guerra não apenas das notícias falsas, mas também da falta delas.

Como diz o relatório de “Nós e as desigualdades”, a pesquisa feita pela Oxfam e o Datafolha em 2019, nós “construímos uma sociedade que normalizou a existência de cidadãos e cidadãs de primeira e de segunda categorias, daqueles que têm direitos e dos que não têm. Um país onde morar em periferias ou ser negro e negra já define, de antemão, a qual categoria você pertence”.

Mas sabemos que não dá para continuar assim. O principal resultado deste trabalho diz que “8 em cada 10 brasileiros acreditam que não é possível progresso sem redução de desigualdades".

Para celebrar esta visão, e nossos 10 anos, nós estreamos hoje um novo capítulo da Mural em Salvador: com uma rede de sete correspondentes locais e uma parceria com grupo A Tarde, projeto fruto de um programa de aceleração do Facebook. Será mais uma grande metrópole a ganhar novas perspectivas sobre si mesma.

Como na nossa trajetória até aqui, nunca caminhamos sozinhos. Foram muitos amigos, colegas, parceiros, doadores, apoiadores, torcedores, financiadores que participaram desta história.

E assim também estamos indo para outra tão desigual região metropolitana. Em companhia de muitos e muitas. Porque a desigualdade não é um problema de quem a sofre. A desigualdade é um problema de todos e todas nós.

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