Descrição de chapéu Obituário Itzchak Belfer (1923 - 2021)

Mortes: Uma casa branca numa cidade cinzenta

Itzchak Belfer lutou contra os nazistas na guerra e ao retornar à cidade natal não encontrou seus familiares com vida

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Sarita Mucinic Sarue
São Paulo

Em 1912, foi inaugurado o orfanato Dom Sierot, em Varsóvia, na Polônia, um casarão branco que abrigava crianças judias, não por desejo religioso e sim pelo fato de o antissemitismo, o ódio gratuito contra os judeus, correr fértil em terras polonesas.

O que me inspirou a escrever este artigo foi a notícia da morte de Itzchak Belfer, 97 anos, uma das milhares de crianças judias que viveram no orfanato de Henryk Goldszmit, mais conhecido como Janusz Korczak.

Meu amigo nonagenário participou da “live da minha life”, do Memorial do Holocausto de o Paulo, no dia 13 de setembro de 2020.

Ele contou sua linda história de superação e a infância privilegiada no orfanato, que lhe garantiu uma vida adulta saudável. Itzchak nasceu num período turbulento da história, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.

Belfer conta com orgulho seu primeiro encontro com Korczak:

“O passado está sempre comigo. Nasci em Varsóvia (Polônia) em 1923. Meu pai morreu quando eu tinha 4 anos. Nós éramos em seis na casa. Foi muito difícil para nós e para mamãe.
Vivíamos em um quarto na casa de meu avô. Mamãe tinha que cuidar de nós e trabalhar para ganhar algum dinheiro.
Então mamãe encontrou uma vaga no orfanato de Janusz Korczak. Fomos ao número 92 da rua Krochmalna e recebidos por Janusz Korczak. Ele nos levou a um quarto pequeno. Mamãe e Korczak se sentaram, mas não havia espaço para mim. Ele me sentou em seu colo e eu o abracei.
Korczak falou com mamãe e comecei a ver como ele era de perto.
Realmente gostei de sua pequena barba. Era loira e tão legal. Eu queria ver como ela crescia e se era real. Então comecei a brincar com ela e a examiná-la. Korczak não reagiu.
Era suficiente, a barba estava lá. Agora, os óculos pareciam interessantes. Eles eram redondos e decidi olhar através deles para mamãe. Cheguei mais perto de Korczak, bochecha com bochecha, e pude ver mamãe.
Mas, a conversa acabou e mamãe me contou: Yitzchakale, você vai ficar aqui e eu vou para casa.
Não lembro se chorei porque eu havia gostado de Korczak e ele estava segurando a minha mão.”
“Então eu disse: está bem, eu fico.
Mamãe me beijou, eu a beijei de volta e ela saiu.”


“Korczak falou:

Yitzchakale, atrás dessa porta há um garoto grande esperando por nós. Ele será seu mentor e explicará todas as regras da casa para você. E assim foi como eu descobri, pela primeira vez, que eu tinha um guardião. Eu tinha um mentor que estava no comando e que me mostraria tudo, como se fosse meu irmão maior.”

Itzchak Belfer (1923-2021), artista judeu e sobrevivente do Holocausto
Itzchak Belfer (1923-2021), artista judeu e sobrevivente do Holocausto - Divulgação/Ibelfer

Janusz Korczak (1878-1942), médico pediatra de formação, idealizou e planejou com sua sócia, a educadora Stefa Wilczynska, e dois arquitetos, a construção de um modelo inovador pedagógico e de arquitetura escolar.

Diferente de tudo o que existia na época, era uma das primeiras instituições planejadas para o bem-estar e pleno desenvolvimento socioemocional da criança.

Com aquecimento central, dois amplos dormitórios com grandes janelas, salas de refeição e de estudo, área de lazer, banheiros com água quente e uma cozinha grande e bem equipada, abrigava 150 crianças entre sete e 14 anos de idade.

Ele desenvolveu um modelo de autogestão, no qual as próprias crianças eram responsáveis pelas atividades que envolviam administração e a convivência social, favorecendo a autonomia e tomada de decisões mediadas pelos educadores Korczak e Stefa.

Nesse orfanato ele idealizou uma comunidade democrática juvenil em que crianças e adolescentes pudessem constituir o parlamento, tribunal e jornal infantil.

O sistema de autogestão dava emancipação à criança outorgando seus direitos. O tribunal infantil foi criado para zelar o respeito entre eles, com um juiz, um conselho jurídico e um secretário. O conselho era representado pelo educador e dois juízes (jovens) eleitos por voto secreto, substituídos a cada três meses.

Seus membros participavam dos julgamentos e as leis eram obrigatórias a todos, de crianças a adultos.

Havia dois suplentes para cada um dos integrantes do Conselho, pois existia a possibilidade de um deles vir a ser réu e nesse caso precisaria ser substituído.

O secretário recolhia as disposições das testemunhas, lia-as durante as deliberações do conselho. Era também responsável pelo quadro do tribunal, pelo livro das deposições e vereditos, pela lista e pelo reembolso por estragos no orfanato. E ainda traçava a curva das sentenças e redigia o jornal do tribunal.

A sentença dos julgamentos era lida em voz alta para todas as crianças e quem discordasse podia apelar, após um mês da data do julgamento. O parlamento contava com vinte deputados jovens eleitos pelo voto secreto e Korczak era o presidente honorário. Estes escolhiam entre si uma comissão legislativa formada por cinco membros e um vice-presidente para compor o senado, que aprovavam ou rejeitavam as leis propostas pelo conselho jurídico.

O Orfanato Dom Sierot, não era escola e sim o lar das crianças. Korczak proporcionou inúmeras atividades extracurriculares, como esportes, dança, marcenaria, música e estudo de línguas, dentre outros projetos culturais como a arte e o teatro.

Ele é reconhecido por sua vasta produção literária e prática pedagógica, que influenciaram e enriqueceram o conceito atual da infância. Escreveu diversos artigos, peças teatrais humorísticas, livros sobre o universo infantil e de educação além de contos infantis e histórias juvenis.

Korczak acreditou que as diferenças religiosas e culturais dentro da sociedade poderiam ser resolvidas pela educação. As diretrizes propostas por ele foram a base para Declaração dos Direitos da Criança, proclamada pela ONU em novembro de 1959.

Em 1919, a convite do Ministério da Educação, Korczak criou e dirigiu o orfanato Nasz Dom, para abrigar as crianças cristãs que perambulavam pelas ruas de Varsóvia, vítimas de famílias arrasadas pelo final da Primeira Guerra Mundial, nos mesmos moldes que o orfanato judaico.

A partir de 1933, ecos da política antissemita da Alemanha, sob liderança de Adolf Hitler, ressoavam em toda Europa Ocidental e Oriental.

Os pogroms, ataques patrocinados pelo governo contra a população judaica, se intensificaram. O boicote foi instaurado negando subsídios às escolas judaicas, dificultando o ingresso dos alunos judeus nas universidades, excluindo-os dos serviços públicos, da área da saúde, de cargos em bancos, no comércio e na indústria.

Na Alemanha e na Áustria uma onda de violência antissemita atingiu o ápice nos dias 9 e 10 de novembro de 1938, na terrível “Noite dos Cristais”. Fato atribuído ao ataque da população, com apoio da polícia, contra lojas, sinagogas e residências de judeus, que foram quebrados e saqueados e incendiados. Judeus foram espancados até a morte e milhares, presos sem justificativa.

Belfer viveu no orfanato dos sete aos 15 anos. Saiu no ano de 1938, época muito difícil para um rapaz judeu viver livre na Polônia. Com atitude e coragem, decidiu junto com um amigo fugir para a União Soviética para se alistar no Exército e lutar contra os nazistas.

Ao final da guerra, com 20 anos e a adolescência roubada, voltou para sua cidade natal toda destruída e não encontrou seus familiares com vida. Sua mãe, avós e irmãos foram mortos nas câmaras de gás da indústria da morte nazista. Em 1945, realizou seu sonho de emigrar para a Terra de Israel, a Palestina de então, sob domínio do Império Britânico.

O estímulo que recebeu no orfanato para desenvolver seu lado artístico foi o impulso para tornar-se um artista plástico de renome no país que decidiu viver por 75 anos, até seu o último suspiro. Ele dedicou sua arte ao homem que sabia amar as crianças, o Bom Doutor, como Korczak era chamado carinhosamente por seus pupilos.

Além das pinturas e esculturas produzidas durante os anos que viveu, publicou diversos livros de literatura infantojuvenil. Proferiu palestras sobre a importância do respeito e direitos da criança e o pleno desenvolvimento de suas potencialidades.

Na semana que antecede o Dia Internacional em Memória as Vítimas do Holocausto (27/01), Itzchak Belfer morreu dormindo, suave como sua personalidade.

Eu tive o privilégio de apresentá-lo numa live e a oportunidade de ouvir a sabedoria de um homem feliz e agradecido por cada momento que viveu no Orfanato Dom Sierot.

O seu último suspiro pode tê-lo levado ao encontro de seu mentor, Janusz Korczak, que sacrificou sua vida, junto com Stefa, os educadores e 200 crianças.

Korczak, um homem a frente de seu tempo e reconhecido na Polônia por seus grandes feitos, poderia ter se salvado das garras nazistas ajudado por seus amigos poloneses, mas preferiu marchar com suas crianças, entrando nos vagões de gado rumo a um dos mais cruéis destinos da humanidade: o campo de extermínio de Treblinka, em agosto de 1942.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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Como educadora do Memorial do Holocausto recebo anualmente milhares de estudantes do ensino médio de escolas públicas e particulares para uma visita guiada aos caminhos da história do Holocausto. São jovens aprendendo os estragos que a intolerância, xenofobia e radicalismos podem ocasionar aos seres humanos.

Por meio de vídeos, fotografia e multimídias, os alunos e visitantes em geral entram em contato com a realidade sombria vivida pelos grupos desumanizados pela ideologia de Hitler, dentre eles os negros, ciganos, homossexuais, deficientes, comunistas e principalmente os judeus.

A missão do Memorial do Holocausto é esclarecer e combater o negacionismo presente em diversos meios de comunicação nos dias de hoje. Em tempos de pandemia estamos trazendo cursos e lives.

Sarita Mucinic Sarue é professora, filha de sobrevivente do Holocausto. Educadora do Memorial do Holocausto em São Paulo. Membro da diretoria da Associação Janusz Korczak do Brasil e autora do livro “Vozes de Paz em Tempos de Guerra” (editora Humanitas, Fapesp)

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