Fiscalizar posse legal de armas ficará mais difícil, alertam especialistas

Criminalistas e estudiosos dizem que decretos de Bolsonaro podem alimentar tráfico e milícias

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São Paulo

O governo federal não pode garantir que o acúmulo de armas possibilitado por decretos do presidente Jair Bolsonaro, os últimos deles tendo sido publicados na sexta (12), permaneça no mercado legal, dizem criminalistas e representantes de instituições que estudam fenômenos ligados à violência.

Eles temem que a flexibilização para aquisição de grandes lotes de pistolas e fuzis, bem como a falta de investimento em fiscalização, acabe gerando desvios da posse legal para a comercialização e a posse ilegais, principalmente pelo tráfico e as milícias.

Com a série de decretos editados desde 2019, agora com quatro novos textos publicados na sexta pré-Carnaval, cidadãos autorizados podem adquirir até seis armas, sendo que algumas categorias específicas, como policiais, podem adquirir até oito.

O governo também estabeleceu a permissão para que atiradores adquiram até 60 armas, e caçadores, 30, só sendo exigida autorização do Exército quando as coleções superarem essas quantidades.

Expandiu-se ainda o volume de munição que os chamados CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) podem comprar. Antes, eram, por ano, até mil munições para cada arma de uso restrito e 5.000 munições para cada arma de uso permitido.

Agora, inclui-se, por ano, insumos para recarga de até 2.000 projéteis nas armas de uso restrito. Com permissão do comando do Exército, caçadores podem extrapolar em duas vezes esse limite. Atiradores, em cinco.

“O presidente da República, no afã de regulamentar de forma sistemática os dispositivos do Estatuto do Armamento acerca do porte de arma de fogo, extrapolou os limites constitucionais do poder regulamentar; a desenfreada edição de decretos sob a suposta ideia de apenas regulamentar a lei, acaba por dissentir do espírito inicial do texto da lei”, diz o advogado constitucionalista e criminalista Adib Abdouni.

O advogado se refere à “exclusão de itens da lista de produtos controlados pelo Exército, como projéteis, máquinas e prensas para recarga de munições, carregadores e miras telescópicas”, além da permissão de compra para atiradores e caçadores.

“Nada, técnica ou juridicamente, justifica a ampliação da flexibilização da norma restritiva, senão o populismo político, em detrimento do amadurecimento e aperfeiçoamento do Sistema Nacional de Armas”, completa.

O número chama a atenção de Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, pois, entre 2014 e 2018, o registro de CACs no exército subiu quase 880%. “Ou seja, muito mais pessoas têm se registrado como CACs”, diz.

Para ela, “está acontecendo uma facilitação de ser um CAC e assim conseguir mais armas”. “Existe o entendimento de que pessoas que estão querendo obter armas, inclusive para defesa pessoal, estão se registrando nessas categorias”, afirma.

Para ser um CAC, é preciso obtenção de um certificado com validade de dez anos, como regras como ser filiado a um clube de tiro, fazer prova de capacitação técnica e avaliação psicológica, sendo negado registro para quem responde por inquérito criminal.

Para Carolina há um “risco real” na medida, contudo. “São armas de alto potencial, sem que haja investimento na capacidade do governo de fiscalizar essas armas”, diz.

Ela diz que “não se investe na capacidade do Exército e da Polícia Federal de fiscalizar. E esses são acervos enormes em casa de pessoas, em locais sem segurança. Eles podem muito facilmente serem desviados para o mercado ilegal. Quanto mais armas legais em circulação, mais chances de elas serem desviadas para o mercado ilegal”, prossegue.

Desde 2017, quando o país viu a quantidade de homicídios atingir os 60 mil por ano, tornando-se a nação com o maior número absoluto de assassinatos, a redução desse patamar se tornou premente tanto para o governo como para as instituições ligadas a pesquisas sobre violência.

Em 2018, houve redução para 51 mil homicídios. Em 2019, foram 45 mil assassinatos. Mas a taxa voltou a subir em 5% em 2020, mesmo com as medidas de isolamento social contra a Covid-19.

“Um dos aspectos importantes para essa redução é a diminuição da violência armada por grupos criminosos, desde os que se dedicam ao comércio e ao tráfico de drogas, até os grupos paramilitares, que vêm surgindo como uma força importante na cena criminal do país, principalmente no Rio de Janeiro”, diz Bruno Paes Manso, do Núcleo de Estudos da Violência da USP.

Ele cita o Rio de Janeiro como estado que não consegue tirar fuzis ilegais de circulação. “E você tem as polícias fugindo do controle dos governadores, a partir do momento em que, em vez de atuar para reduzir o crime, passam a ser protagonista de atividades criminosas”, ressalta.

“Quando você vê o governo atuar no sentido de fragilizar tanto o controle das armas e das munições, ele atua no sentido de produzir um retrocesso civilizatório, com medidas que fragilizam as instituições frente a essas tiranias territoriais armadas.”

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSBP) também se manifestou sobre os decretos, por meio de nota. “O fato se torna mais assombroso se relembrarmos que Bolsonaro comentou, no ano passado, diante de ministros, que a medida [os decretos, à época] serviria para evitar que a população fosse escravizada por uma ditadura.”

Para o FBSP “as novas regras parecem estar sendo criadas para constranger opositores do atual governo e estimular a população a uma insurreição armada contra quem ouse defender a já fragilizada democracia brasileira”.

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