Bisavós lésbicas criaram neta e bisneta e têm 'genro' trans

Psicóloga casada com ex-militar em Limeira (SP) conta história de sua família

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São Paulo

Maria Rita Lemos, 74, mostra, orgulhosa, o casaquinho azul de tricô que fez para a bisneta, Catarina. Enquanto abraça a menina, que hoje tem 5 anos, diz que ensinou-a a rezar o “Santo anjo do Senhor” e comenta sobre a lasanha do almoço familiar do fim de semana.

O estereótipo da bisavó tradicional termina aí. Mãe de três filhos e avó de dois netos, viúva do primeiro marido e casada por dez anos com o segundo, a psicóloga Maria Rita começou um relacionamento aos 51 anos com outra mulher: a professora de educação física e sargento da reserva da Polícia Militar Fulvia Margotti, 60.

Da esq. para a dir., Túlio, Paloma, Maria Rita, Fúlvia e, no centro, Catarina
Da esq. para a dir., Túlio, Paloma, Maria Rita, Fúlvia e, no centro, Catarina - Arquivo pessoal

As duas se conheceram em 1998 em uma sala de bate-papo virtual, e Fulvia saiu de Cuiabá, onde morava, para conhecer a amiga virtual em Limeira (SP). Decidiu, então, terminar a relação de dez anos que tinha com uma namorada e se mudou para lá.

Chegou de carro, após dirigir mais de 30 horas, levando apenas uma muda de roupa, um violão e um computador. Acabou vendendo o automóvel para ajudar a companheira a pagar dívidas deixadas pelo ex-marido.

Juntas desde então, elas agora completaram 23 anos de união e quase 9 de casamento civil. Em sua casa, criaram a neta de Maria Rita, Paloma, e a bisneta, Catarina, e cuidaram da mãe de Fulvia quando ela adoeceu. Foi ela que decorou a cerimônia de casamento da filha, com pétalas de rosas e balões de coração, em 11 de novembro de 2012. A aliança do casal, porém, tem outra data gravada: 16 de outubro de 1998, dia em que se conheceram.

Paloma agora tem 29 anos e está casada com a analista de recursos humanos Thaís Asbahr Antônio, 35 —o primeiro sobrenome é da esposa e ela incorporou ao seu.

Depois de uma vida inteira sem se identificar com o gênero feminino, Thaís está fazendo tratamento para se tornar um homem trans, Túlio, como será chamado a partir de agora nesta reportagem.

“É um sonho realizado, uma libertação”, diz. Foram seis meses de preparação, entre exames e consultas com psicólogo e psiquiatra para confirmar o diagnóstico. A receita médica para a primeira injeção de hormônio era para o dia 4 de junho, um sábado. “À meia-noite eu já estava na farmácia. Não conseguia dormir, de tanta ansiedade”, conta.

A previsão é que as mudanças físicas ocorram em cerca de três meses, mas, segundo ele, sua voz já está mudando. “Daqui a um mês, de repente, se você me ligar eu já vou estar diferente.”

Paloma e Túlio moraram com Maria Rita e Fulvia até se casarem e se mudarem para o apartamento onde vivem agora com a filha e quatro gatos. As duas avós ainda estão se acostumando com a nova identidade dele e de vez em quando se confundem e usam o pronome feminino. Costumam ser prontamente corrigidas pela pequena Catarina.

“Ela foi a primeira a pegar o nome, não erra nunca. Diz: ‘Não é mais minha tia Taís, é meu tio Túlio’”, conta Paloma. Segundo ela, o casal se preocupou em como contar a novidade para a filha e esperou até começar de fato o processo. “Mas ela foi a mais tranquila de todos, aceitou de uma forma muito natural. Tentamos sempre conversar com ela de um jeito adequado para a idade, sem queimar etapas, mas sem mentir também, sem esconder nada.”

Thaís Ahsbar Antônio, na montagem de fotos que fez para anunciar nas redes sociais sua transição de gênero
Thaís Ahsbar Antônio, na montagem de fotos que fez para anunciar nas redes sociais sua transição de gênero - Arquivo pessoal

Paloma, que desde os cinco anos de idade foi criada pelas duas avós, está acostumada a ter uma família diferente do padrão. “Nunca fui criada por pai e mãe, então para mim sempre foi natural crescer em uma família não tradicional. Lógico que as pessoas falavam ‘nossa, sua avó é casada com outra mulher?’, mas isso nunca foi um problema para mim”, diz.

Descobrir-se bissexual, para ela, não foi um problema. Já Túlio enfrentou as dificuldades de aceitação que tantos homossexuais precisam encarar desde cedo. Chegou a ser freira em um convento durante cinco anos, dos 20 aos 25.

“É surreal a diferença da criação da Paloma para a minha. Eu sou de uma família bem tradicional e demorei muito para me aceitar e, depois, para me assumir”, afirma. Hoje, seus pais já se acostumaram à nora e se dão bem com a família toda.

Segundo Fulvia, o casamento de Paloma e Túlio foi um divisor de águas nesse sentido. “Foi uma festa totalmente familiar. Meus parentes estavam aqui, minha mãe morava com a gente. Depois da cerimônia fomos para um restaurante, passamos a virada do ano todos juntos. Os pais do Túlio começaram a nos enxergar com outros olhos. Eles viram que não é promiscuidade. É uma família que paga contas, discute, como qualquer outra. É família.”

A transição de gênero da filha, porém, ainda é um tabu para eles. “Eles fingem que nada está acontecendo. Ninguém me chama de Túlio, é só Thaís. Talvez quando a barba começar a crescer algo mude”, diz ele.

O casal diz que sente alguns “olhares tortos” de algumas pessoas, mas nunca passou por situações de discriminação explícita. “No condomínio, quando a gente se mudou, o pessoal estranhou bastante ver a gente com a Catarina. Mas depois eles perceberam que somos uma família, que cuidamos bem da nossa filha, e agora nos respeitam mais”, diz Paloma.

A menina, que antes dizia que tinha duas mães, agora diz que tem dois pais: o biológico e Túlio. Já ele “foi abençoado com um monte de sogras”, brinca Fulvia, referindo-se a ela, Maria Rita, à mãe de Paloma e à madrasta da neta, casada com seu pai. “Precisa de um fluxograma para entender tudo”, diz, rindo. “Imagina uma ex-freira, uma ex-militar, esse tanto de gente. E todo mundo convive bem.”

Em breve, a grande família deve crescer ainda mais. Paloma e Túlio entraram na fila da adoção e querem um menino de até três anos de idade. Maria Rita e Fulvia estão ansiosas para serem bisavós mais uma vez.

“Estamos torcendo para ele vir”, diz Maria Rita. “Sofri bastante para chegar até aqui. Mas tenho muito orgulho da minha família.”

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