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Erro judiciário deve gerar indenização, mas nada paga liberdade perdida, diz ex-presidente do STF

Cezar Peluso, 78, cita inação de órgãos correcionais e defende que juízes tenham sensibilidade

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São Paulo

O ex-presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Cezar Peluso, teve sua passagem pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) marcada pela libertação de milhares de presos em situação ilegal. Durante a gestão de Peluso no órgão, mutirões liberaram por volta de 30 mil presos.

A respeito das prisões de inocentes, tratadas em série pela Folha, o ex-ministro disse que erros judiciários devem resultar em indenizações. “Se o Estado errou, tem que indenizar nos limites do possível, porque na verdade não há nada no mundo que indenize a perda da liberdade nem por um dia, muito menos por anos”, disse.

Ele também disse considerar que há inação em órgãos de correcionais do Judiciário e que os magistrados deveriam ser preparados para ter sensibilidade. “Só quem ama pode condenar”, definiu.

O ex-ministro ainda falou sobre como o Judiciário, por vezes, acaba atendendo demandas irracionais da sociedade, que pretende tratar como monstruosos mesmo crimes de menor potencial ofensivo.

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Cezar Peluso, ex-presidente do STF - Jorge William - 16.dez.19/ Agência O Globo

Na sua visão, o que leva os inocentes ao sistema penitenciário?

Não é um único fator, são fatores concorrentes. Às vezes, são erros de autoridades policiais; segundo lugar, erros de autoridades judiciárias; em terceiro lugar, isto é muito importante, uma certa inação dos órgãos judiciários de correição. Há [casos] resultados de erros da polícia, de juízes, mas que sendo eventuais poderiam ser corrigidos em uma ação mais efetiva dos órgãos correcionais do Judiciário, que não exclui a necessidade dos órgãos correcionais da própria Polícia Judiciária.

Temos competência tanto de órgãos do Judiciário quanto de órgãos da polícia responsáveis pela situação carcerária que têm que verificar não apenas o estado material dos presídios mas também a situação dos presos. Portanto, quando verificar que há ilegalidade na prisão, relaxar essas prisões.

Quando a situação material for extremamente desumana, os governos responsáveis pelos presídios têm que resolver os problemas dos presídios ou retirar a população de um determinado local para outro.

Às vezes, a gente percebe que as condições desumanas na prisão não geram preocupação por parte da sociedade.

Isso é um fato notório. A sociedade não se mexe. As autoridades responsáveis tampouco. Eu nunca vi um movimento significativo, seja de segmentos da sociedade, seja de modo geral das autoridades responsáveis do sistema carcerário. Primeiro, de crítica à situação e tentativa de pelo menos minorar esse estado que eu chamei de um estado que evocava condições da Idade Média.

No nosso levantamento sobre falhas, muitas começaram em relação ao reconhecimento feito de maneira incorreta. O STJ (Superior Tribunal de Justiça) mudou recentemente o entendimento sobre esse assunto e tornou necessário seguir os procedimentos como a colocação de suspeitos ao lado de pessoas parecidas. O sr. acha que isso resolve o problema ou é preciso mais ajustes?

O que é preciso são autoridades policiais que obedeçam o que está previsto na lei, seja para o reconhecimento ou qualquer outra medida. Se forem observadas as leis, na grande maioria dos casos será evitada alguma ilegalidade ou algum erro mais grave.

Conversamos com pessoas presas injustamente que se endividam para pagar a defesa e ainda têm indenizações negadas. Como vê essa questão?

Fora de dúvida, em caso de erro judiciário, o direito do ex-detento a uma indenização é alguma coisa óbvia. Se o Estado errou, tem que indenizar nos limites do possível, porque na verdade não há nada no mundo que indenize a perda da liberdade nem por um dia, muito menos por anos.

Um homem de Minas Gerais ficou 17 anos preso confundido um criminoso sexual. Ele saiu da prisão idoso e ainda luta para receber a indenização que conseguiu na Justiça.

Isso é um problema do sistema. O sistema judiciário brasileiro é assim. Ele tem variados recursos, variadas instâncias, e para decidir alguma coisa de modo definitivo se levam anos. Aí não há exceção, seja para resolver um despejo, seja para resolver a indenização de quem foi preso injustamente. Não há distinção nenhuma, acabam todos sendo prejudicados por essa crise do sistema judiciário processual brasileiro, que tem quatro instâncias, [mas] duas já seriam suficientes para resolver pelo menos a metade dos casos.

O sr. já ouviu alguma autoridade ser punida por ter preso algum inocente?

Juiz só poderia ser responsabilizado se ele tivesse agido por má-fé, por dolo. Não conheço nenhum caso de juiz que colocou alguém na cadeia por má-fé, dolo, cometendo uma ilegalidade, nunca soube disso. O que há são erros humanos, em que acaba sendo condenado um inocente, e a culpa nem sempre é exclusiva dos juízes.

O juiz trabalha com base em processos que são previamente instruídos por inquéritos da polícia e por atividades do Ministério Público. Às vezes aparece nesses autos uma situação que não corresponde à realidade e com a qual o juiz não concorreu em nada, e acaba condenando um inocente com base nesses elementos errôneos, mas que na verdade não advieram propriamente do Judiciário.

O que diria para juízes para evitar erros e evitar que inocentes engrossem ainda mais essa massa carcerária?

Os tribunais deveriam preparar os juízes no sentido de terem uma grande sensibilidade. Não diria nem sensibilidade social, eu diria uma sensibilidade com a pessoa humana. O juiz tem que ser alguém que gosta de pessoa humana, respeita a dignidade das pessoas e leva a sério essa dignidade. Uma vez sintetizei isso dizendo: só uma pessoa que gosta das pessoas é que poderia julgar processos criminais. Só quem ama pode condenar.

Há uma expressão comum que o Brasil prende muito e prende mal. O senhor concorda com essa expressão?

Com certeza, o Brasil é um dos que mais prendem no mundo. O pior de tudo não é isso. O pior de tudo é [a quantidade de presos] que são provisórios [em torno de 45%], que estão presos por prisão em flagrante ou prisão preventiva. Isto é, não estão cumprindo pena definitiva. Há uma pressão pública dizendo que a sociedade, em relação a isso, não se comporta como ser humano sensato, numa situação de tranquilidade, fazendo juízo crítico das coisas.

A massa de segmentos sociais, expressões de opinião pública, é muito emocional. As pessoas ouvem falar da prática de um crime aparentemente monstruoso e generalizam essa repulsa contra qualquer expressão de criminalidade, seja pequena média ou grande, todo mundo tem que ir para a cadeia. É aquela história, bandido bom é bandido morto. Essas frases traduzem bem essa irracionalidade das expressões sociais.

E há uma resposta dos agentes, tanto policiais, Ministério Público, Judiciário, que acaba exacerbando as respostas jurídicas a essas demandas sociais. E aí resulta tudo isso.

Então o Judiciário corresponde a uma demanda emocional da sociedade?

Também. Não o Judiciário como um todo. O problema é que Judiciário, Ministério Público, polícia são compostos por humanos. O ser humano, dependendo da sua personalidade, da sua história, da sua cultura, da sua formação, dos seus preconceitos, da sua ideologia, alguns respondem de um modo, outros respondem de outro, alguns controlam as suas pulsões, outros controlam menos, outros não controlam, acaba sendo isso.

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