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Passavam por mim e iam direto a um homem, diz 1ª mulher a dirigir presídio no RS

Major Ana Maria Hermes comanda o antigo Presídio Central de Porto Alegre, já tido como o pior do país

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Porto Alegre

Ao entrar na sala da direção da Cadeia Pública de Porto Alegre, o antigo Presídio Central, na parede pintada de preto, à direita, se vê escrito em giz branco: “Quem está na trincheira contigo? E ISSO IMPORTA? Mais do que a própria guerra!!!”, atribuída ali ao escritor norte-americano Ernest Hemingway.

A frase foi escolhida pela major Ana Maria Hermes, 46, a primeira mulher a assumir a direção do presídio no Rio Grande do Sul com quase 60 anos de existência, que na prisão que já foi considerada a pior do Brasil por uma CPI da Câmara dos Deputados, onde vivem hoje cerca de 3.400 presos, população maior que muitos municípios brasileiros. ​

A Major Ana Maria Hermes, 46, assumiu o comando da Cadeia Pública de Porto Alegre, o antigo Presídio Central, em julho, se tornando a primeira mulher no cargo - Daniel Marenco/Folhapress

“Essa frase demonstra a relevância dos policiais militares, dos servidores que estão aqui comigo. À noite, quando estou em casa dormindo, são eles que estão aqui”, diz ela.

Sem policiais militares na família, a atual major decidiu entrar na corporação depois que um colega da faculdade de direito na Unisc (Universidade de Santa Cruz do Sul), oficial da Brigada Militar, a PM gaúcha, sugeriu que ela fizesse o curso de oficiais.

Ela trabalhou por cinco anos na Polícia Civil, mas tinha admiração pela farda militar e já tinha sonhado em ingressar no Exército. “Fiz com a intenção de ser a guardiã das cidades, hoje sou guardiã de uma cidade diferente”.

Na Brigada desde 2005, passou pela Força Nacional e fez um curso sobre movimentos de massa que a especializou para trabalhar com os chamados distúrbios civis, atuando na Copa do Mundo de 2014 e nas Olimpíadas de 2016.

Ela diz que sempre foi respeitada como mulher e policial, mas cita como exemplo que, quando estava em ações nas quais comandava outros policiais, na FN, no Rio de Janeiro, as pessoas que buscavam informações ou queriam falar com o responsável no local passavam por ela e iam direto aos homens presentes.

"As pessoas da comunidade vinham querer conversar com alguém, passavam por mim, se dirigiam a alguém masculino, mais forte, e queriam saber quem era o responsável", conta.

Para a major, ainda persiste a ideia da polícia que use a força. "Mas essa força não precisa ser violenta, pode ser através de equipamentos de menor potencial ofensivo, por isso que mulheres conseguem operar dentro das instituições."

Sobre os presos, ela diz que, assim como outras mulheres que trabalham com a população da Cadeia Pública, reconhece que eles têm respeito.

“Eu já tinha contato com eles na condição de subdiretora. Eu sempre tive um diálogo transparente, do que é possível. Não tive nenhuma dificuldade com relação a isso, em jargão de cadeia, é papo-reto”, afirma ela.

“Só de estar à frente da Cadeia Pública, já é um desafio enorme, seja uma mulher ou um homem”, afirma o padre Diego da Silva Côrrea, responsável pela Pastoral Carcerária na Arquidiocese de Porto Alegre. "Tenho certeza que a major vai manter o mesmo empenho e dedicação dos diretores anteriores".

A Cadeia Pública, que mudou de nome em 2017, no governo de José Ivo Sartori (MDB), é uma das duas unidades prisionais dirigidas pela Brigada Militar hoje no Rio Grande do Sul. A corporação assumiu nos anos 1990 depois de uma série de motins e rebeliões no sistema gaúcho.

A solução temporária de seis meses, porém, já dura 26 anos. Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2020, o governador Eduardo Leite (PSDB) disse que seu governo estava buscando construir novas unidades para distensionar a pressão no Central e que elaboravam um plano para substituir os policiais por agentes penitenciários. “Mas isso vai levar tempo, não vai ser feito em um ano, dois anos”.

A Seapen (Secretaria da Administração Penitenciária), criada na gestão dele, diz que estuda a questão, mas não fala em previsões. No ano passado, quando a chegada da Brigada ao comando do presídio completou 25 anos, a pasta previa o início da retirada dos policiais em 2022.

“Apesar de haver desvio de função, não há forma de a Brigada sair. Deverá haver um período de transição, pois a Susepe (Superintendência de Serviços Penitenciários) não possui efetivo para substituir”, avalia a juíza Sonáli da Cruz Zluhan, responsável pela Vara de Execuções Criminais que fiscaliza a unidade.

“O presídio continua com a mesma estrutura em relação aos itens de salubridade. O que pode ser considerado um pouco melhor é que, pela logística da pandemia, houve redução dos presos recolhidos no local em quase mil presos a menos”, avalia ela.

Hoje, a estimativa é de que Cadeia Pública tenha entre 3.400 e 3.500 presos em um espaço com capacidade de engenharia para 1.824. Dados desta segunda-feira (6) apontam que 1.989 ds são provisórios, outros 1.459, condenados.

O local tem uma das primeiras alas para pessoas LGBTQIA+ criadas em presídios no país e não recebe criminosos sexuais. A nova diretora explica que isso se deve ao fato de não ter espaço específico para eles. Ela calcula hoje a presença de quatro facções criminosas mais numerosas que as demais.

Essa é a terceira passagem da major Ana Maria pela unidade, onde teve seu primeiro contato com o sistema carcerário, há dez anos. A primeira, entre 2011 e 2013, foi como chefe da sala de visitas. Depois, entre 2018 e 2019, ela se tornou gestora de projetos e recursos humanos. No ano passado, voltou para assumir a subdireção.

Em 2013, a OEA (Organização dos Estados Americanos) expediu medida cautelar pedindo que o governo brasileiro adotasse medidas para solucionar a situação caótica do Central. Segundo o governo do estado, ela ainda é válida.

No ano seguinte, um mutirão do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) recomendou o esvaziamento da unidade, e um dos pavilhões chegou a ser parcialmente derrubado pelo governo Tarso Genro (PT).

“Aquela ideia de que estávamos na pior cadeia do país tinha muito mais a ver com a questão estética, estrutural, do que com os serviços que o estado levava até os presos", diz a major. "Não vou dizer que não temos problemas, mas o status de pior presídio não condizia com o trabalho de cada servidore aqui".

A juíza Sonáli, que seguiu visitando presencialmente o local mesmo durante a pandemia, conta que o que diferencia o Central de outros presídios é o fato de não possuir celas fechadas, apenas as galerias são trancadas, o que acaba possibilitando que sejam colocados mais presos no local ocupando os corredores e aumentando o risco de contaminação e proliferação de doenças.

“Os maiores problemas são as questões de salubridade, esgotos a céu aberto, caixas d’água abertas onde caem dejetos de pássaros e baratas, há ratos e contaminação por sarna, por exemplo”, ressalta ainda ela.

Com chimarrão em cima da mesa, a major Ana Maria conta que, durante a sua gestão, pretende focar em atrair parceiros para oportunidades de profissionalização dos presos.

Ela diz acreditar na ressocialização. “A hora que eu perder a crença nisso, vou entregar essa cadeia e arrumar outra coisa para fazer. Vou sair daqui com a ideia de recuperar 100% das pessoas presas? Não. Mas vamos trabalhar todos aqueles que estiverem em condições de retornar ressocializados”.

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