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Novo rateio de verba para segurança prejudica estado com alta na violência

Ceará receberá piso do fundo mesmo sendo um dos que mais inflam taxa nacional de crimes violentos

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Renato Sérgio de Lima

Diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

O escritor italiano Tomaso de Lampedusa, em sua obra mais conhecida, "O Leopardo" (1958), escreveu que "tudo deve mudar para que tudo fique como está". Foi isso que, em um primeiro momento, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) fez ao redefinir os critérios de repasses a estados de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP).

O órgão publicou no Diário Oficial da União, no último dia 9, duas portarias que mudam os procedimentos e critérios de repasses do FNSP para estados, municípios e Distrito Federal.

Nelas, o MJSP define uma série de regras para a transferência de recursos na modalidade fundo a fundo, criada em 2018 para facilitar a gestão de recursos e a aplicação do dinheiro recebido.

O ministro da Justiça, Anderson Torres, fala ao telefone
O ministro da Justiça, Anderson Torres - Pedro Ladeira - 19.out.2021/Folhapress

As duas portarias vêm se somar a uma outra, publicada em julho deste ano, que fixa um percentual mínimo de 3,5% de rateio do FNSP para os estados e o DF. Para o cálculo desse percentual, o MJSP considerou 24 critérios, como território em km², taxas de criminalidade violenta e/ou atendimento às demandas da União por informações ou adesão a sistemas e plataformas federais.

Mas não é bem assim. Uma leitura mais detalhada das novas regras permite visualizarmos que elas deixam espaços para ajustes de natureza política e institucional.

Ou seja, em uma complexa composição de critérios, que burocratizou o cálculo e que serve mais para anular o efeito de indicadores positivos do que reconhecer esforços ou fomentar novas práticas, é como se o Ministério da Justiça tivesse considerado a população como critério único de repasse.

No entanto, ao fixar um piso, 15 UFs foram classificadas para receberem o mínimo do rateio de 3,5% do FNSP e outras 12 receberão mais do que isso, entre 3,85% e 4,31% dos recursos, ainda que 9 sejam exatamente as mais populosas do país (SP, RJ, MG, RS, BA, PR, PA, SC e MA).

Se AC, RO e RR estão fora desse critério populacional e receberão mais do que o piso, em sentido contrário, entre os 12 estados mais populosos do país, somente o Ceará receberá o piso de 3,5% do FNSP, sendo ele uma das UFs que mais pesam para a tendência da taxa nacional de crimes violentos.

Acre, Rondônia e Roraima são governados por aliados do presidente Jair Bolsonaro, enquanto o Ceará é governado por Camilo Santana, que tem sido um dos principais nomes da oposição a cobrar uma política nacional de segurança pública.

Não bastasse essa, digamos, curiosa convergência entre critérios técnicos e aspectos políticos, ao analisarmos as portarias publicadas nos detalhes, notaremos nas fontes dos dados que compõem as variáveis dos 24 critérios passos fundamentais para o apagamento do monitoramento dos feminicídios e mortes decorrentes de intervenções policiais, temas que desagradam a base radicalizada do presidente.

Isso porque, entre as fontes de dados para homicídios de mulheres e homicídios em geral, o MJSP define as bases estaduais como origem das informações, mesmo que essas mesmas bases, na maioria das unidades da Federação, já disponham de capacidade de desagregação de variáveis e produção de dados sobre letalidade policial e feminicídios.

Na entrelinha, o governo assume que não monitorará porque não quer, não porque não consegue e/ou não dispõe de dados.

Outra questão que dispara alertas é que o ministro Anderson Torres aproveita para misturar informações táticas e operacionais —justificadamente reservadas— com acesso a informações sobre protocolos operacionais padrão e manuais de doutrina e conduta, bem como informações sobre equipamentos, máquinas, veículos, dados relativos à distribuição e capacitação dos agentes dos órgãos de segurança pública.

Em seu artigo 50, a portaria 480/2021 explicita que "são de acesso restrito as informações cujo conhecimento por pessoa não autorizada implique risco ou dano aos interesses da sociedade e do Estado".

Aqui, os riscos apontados por Léo Arcoverde, Maria Vitória Ramos e Rafael Zanatta, em artigo nesta Folha no último dia 4 sobre os ataques à Lei de Acesso à Informação, ganham ainda mais concretude e há quase um salve conduto para que as polícias não prestem contas à população sobre como definem suas prioridades e estratégias.

No mês em que a LAI completa 10 anos, o MJSP lidera uma das frentes de ataque mais mortais à transparência. E nem todas as polícias do mundo democrático têm esta postura, a exemplo da experiência do Escritório Independente para Conduta Policial, no Reino Unido, que monitora as polícias em vários aspectos operacionais de forma pública e transparente.

Para concluir com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os estados são responsáveis por, em média, 80% de todas as despesas com segurança pública no Brasil. São eles que, sem considerar o Distrito Federal, pagam os salários dos mais de 641 mil policiais militares, civis e penais, bem como os bombeiros militares existentes no país.

Ao mesmo tempo, boa parte de todo o dinheiro que o governo federal repassa para a segurança pública vem, desde 2018, das loterias. Em 2021, até setembro deste ano, último dado disponível, a Caixa repassou R$ 1,17 bilhão para o FNSP. Mantida a média mensal desses repasses, a Caixa deve transferir para a segurança pública até o final deste ano um valor muito próximo daquele de 2020, que atingiu R$ 1,56 bilhão.

São esses recursos que, sem dúvida, estão fazendo a diferença para estados e municípios poderem investir em programas de redução da violência e de valorização policial.

Assim, a União tem papel fundamental de coordenação federativa e articulação operacional, mas não faz nenhum sentido centralizar decisões e distribuir recursos de forma tão opaca e confusa.

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