Com morte da mãe e prisão do pai, crianças são vítimas invisíveis de feminicídios

Crime que mata mais de 1.300 mulheres por ano no Brasil deixa mais de 2.000 órfãos

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

A dona de casa Laíde Ferreira, 63, que cuida dos netos desde que a filha foi assassinada pelo marido em Manaus Mathilde Missioneiro/Folhapress

Manaus

Sentados na cama da casa onde moram em Manaus, os irmãos Alice, 11, e Lucas, 10, brincam de entrevistar um ao outro com o gravador da reportagem. "Qual é a sua matéria preferida na escola?"; "O que você quer ser quando crescer?"; "Você sente saudade da sua mãe?".

A última pergunta sugere a dor da perda compartilhada: as crianças tinham 6 e 4 anos quando presenciaram a mãe, Josilene Ferreira de Araújo, ser assassinada pelo marido, Diego Pacheco, em 2016.

Ela tinha 23 anos quando foi espancada, esfaqueada e asfixiada com um travesseiro. Depois do crime, Diego deixou o corpo da esposa no quarto dos filhos, embrulhado em um lençol.

Órfãos da mãe e com o pai preso, Alice e Lucas passaram a ser criados pelos avós e fizeram terapia durante três anos para aprender a seguir adiante após o trauma (os nomes das crianças foram trocados nesta reportagem). Alice testemunhou no julgamento do pai, que foi condenado a 17 anos de prisão em 2019.

Josilene foi vítima de um crime violento que se mantém em um patamar elevado no Brasil: o assassinato de mulheres por sua condição de gênero, ou seja, pelo fato de serem mulheres. Foram ao menos 1.350 feminicídios no ano passado, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Já Alice e Lucas são vítimas ocultas desse mesmo crime, apesar de não constarem em nenhuma estatística oficial.

Hoje, passados cinco anos, eles já conseguem sorrir e brincar. Mas foi um longo processo de recuperação, acompanhado pela avó, Laíde Ferreira de Lima, 63, que lidava com seu próprio luto pela morte da filha caçula. "Dormi com eles na cama durante três anos. Nem no banheiro eles tinham coragem de ir sozinhos", lembra. "Eu peço forças para cuidar dessas duas crianças que Deus deixou para mim. Eles dois são a minha vida."

Gênero: feminino

Série discute, em oito minidocumentários e reportagens especiais, diferentes aspectos da violência contra a mulher no Brasil

O relato de Laíde sobre o relacionamento da filha tem elementos comuns a outros crimes do tipo. Josilene conheceu Diego aos 15 anos e não demorou a engravidar. O companheiro não a deixava estudar nem trabalhar, tentava afastá-la da família e a impedia até de ter seu próprio celular, por ciúmes. Abusava de álcool e drogas e já tinha agredido a esposa muitas vezes antes de matá-la. Depois, pedia desculpas, trazia presentes e dizia que ia mudar.

"Ele vinha mansinho, carinhoso com ela e com as crianças, levava ela para jantar. Era manipulador", afirma Laíde. "E ela gostava muito dele. Dizia que tinha fé que iria tirá-lo das drogas, que iria mudá-lo."

Diego matou Josilene depois que ela decidiu se separar dele, outro padrão em feminicídios. Segundo Laíde, a filha descobriu que ele a traía com um homem e desistiu da relação. "Nessa mesma semana ele tirou a vida dela. Ele planejou", diz.

O feminicídio foi incorporado ao Código Penal brasileiro em 2015, como um homicídio qualificado que ocorre em casos de violência doméstica ou de "menosprezo ou discriminação à condição de mulher", e prevê uma punição aumentada —de 12 a 30 anos de prisão. Quando é praticado na presença de filhos ou pais da vítima, a pena pode ter acréscimo de um terço até a metade.

Não há dados nacionais sobre o número de filhos deixados pelas vítimas de feminicídios. Segundo uma projeção feita pelo FBSP a pedido da Folha, com base na taxa de fecundidade por mulher e nos dados desse crime em 2020, estima-se que no ano passado fossem cerca de 2.376.

Algumas regiões têm levantamentos mais precisos, como o Distrito Federal, onde desde 2015 as 102 vítimas de feminicídios que eram mães deixaram 148 crianças e 90 adultos órfãos até setembro deste ano. Uma lei sancionada em agosto criou no DF um programa de assistência a essas crianças.

No estado do Rio de Janeiro, segundo um dossiê do Instituto de Segurança Pública, das 78 vítimas de feminicídios em 2020, 67% tinham filhos. Em 15 ocasiões, eles presenciaram o assassinato da mãe.

Em São Paulo, um estudo do Ministério Público que analisou 364 denúncias entre 2016 e 2017 mostrou que de cada quatro feminicídios, um foi cometido diante de outra pessoa. Em mais da metade dos casos, essas vítimas secundárias eram os filhos: 43% presenciaram o ataque e 14% também foram agredidos.

No Amazonas, um projeto da Defensoria Pública acompanhou os órfãos deixados por 11 vítimas. A média no grupo é de três filhos por mulher, mais de 70% deles com menos de 12 anos de idade. Em 9 dessas famílias, a guarda ficou com as avós maternas.

"Essas crianças perdem duas vezes. Elas tinham pai e mãe e do nada ficam sem os dois", afirma Márcia Moraes, assistente social desse projeto. "E as avós maternas ficam extremamente sobrecarregadas. De repente passam a ser responsáveis por uma ou mais crianças, muitas já vivenciam o cansaço ou as doenças da idade. Como vão trabalhar? Esses danos são invisíveis às políticas públicas."

Moraes defende políticas específicas para essas famílias, com protocolos de atendimento e direito a uma pensão.

Um projeto de lei apresentado em 2020 pela deputada federal Erika Kokay (PT) propõe que os filhos de vítimas de feminicídio tenham acesso facilitado a assistências médica, psicológica e jurídica, além de prioridade na lista de adoção, se for o caso. O PL foi encaminhado à Comissão de Seguridade Social e Família e já teve parecer positivo da relatora, mas ainda não há previsão de quando será votado.

Endemia dentro da pandemia

Especialistas consideram a violência de gênero hiperendêmica no Brasil —expressão que descreve doenças persistentes e de alta incidência. E o encontro dessa endemia com a pandemia de Covid-19 não favoreceu as mulheres, que passaram mais tempo isoladas, convivendo com seus agressores e em meio à tensão da perda de renda familiar.

Se por um lado em 2020 caíram as denúncias de violência doméstica, os pedidos de ajuda ao 190 (número de emergência da polícia) cresceram e o número de feminicídios se manteve estável, o que sugere uma maior dificuldade para denunciar.

"Cai a vitimização de mulheres na rua e sobe a vitimização de mulheres em casa", diz Samira Bueno, diretora executiva do FBSP. "E mesmo os principais autores sendo o companheiro ou o ex, neste ano começaram a aparecer outros familiares, como pai e mãe, padrasto, madrasta, irmãos e, no caso das mulheres maiores de 60 anos, o filho."

Uma pesquisa feita pelo FBSP com o Datafolha mostrou que uma em cada quatro brasileiras disse ter sofrido, no primeiro ano da pandemia, alguma violência —física, sexual, psicológica ou verbal.

Segundo Bueno, o número de feminicídios pode ser maior, pois alguns casos são erroneamente classificados como homicídios comuns. Em 2020, por exemplo, 14,7% dos homicídios femininos tiveram como autor o parceiro ou ex-parceiro íntimo, o que deveria torná-los automaticamente um feminicídio.

Quando o assassino não é o companheiro da vítima, há ainda mais subnotificação. "Feminicídio não precisa ser decorrente de violência doméstica. A mulher pode não conhecer o autor. Um estupro seguido de morte é um feminicídio. Esses casos a polícia pode ter dificuldade de avaliar", diz.

No ano passado, 8 em cada 10 feminicídios foram cometidos pelo parceiro ou ex-parceiro da vítima, e mais da metade ocorreu dentro de casa. Os estados com maiores taxas desse crime foram Mato Grosso, Roraima, Mato Grosso do Sul e Acre.

O instrumento usado para matar é o grande diferencial para outros homicídios. Enquanto 64% dos demais assassinatos de mulheres são cometidos com armas de fogo, em 55% dos feminicídios os agressores usam armas brancas como facas, tesouras ou pedaços de madeira. Por ser um crime de ódio cometido em casa após uma série de outras violências, a pessoa usa o que encontra pela frente.

"O autor do feminicídio não segue o estereótipo do sujeito criminoso. Ele é o cidadão de bem, pai de família, bom profissional, o amigo legal", diz Bueno. "Por isso muita gente desencoraja a mulher a denunciar. A violência doméstica ainda é justificada socialmente."

A funcionária pública Sônia Oliveira, 60, sabe bem o que é isso. Durante 40 anos, ela foi agredida, xingada e humilhada pelo companheiro. Fora de casa, porém, ele era "um lorde", conta. "O comportamento social dele era outro. Até hoje o pessoal fica admirado [quando sabe que ela foi vítima de violência]."

Os dois se conheceram quando Sônia tinha 18 anos. "Foi o único homem da minha vida. Logo no primeiro ano, ele me deu uma surra tão grande. Só que no começo a gente não percebe a agressividade. Eu pulava a pedra e seguia em frente", diz.

Foram muitas pedras nessas quatro décadas. "Qualquer coisa que eu reclamasse ele vinha para cima de mim. Uma vez ele correu atrás de mim com um terçado [um tipo de facão]. Ele me batia na frente do meu filho, me xingava dos piores nomes."

A funcionária pública Sônia Oliveira, 60, que foi vítima de violência domestica e ameaçada de morte pelo marido durante 40 anos
A funcionária pública Sônia Oliveira, 60, que foi ameaçada de morte pelo marido durante 40 anos - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Para justificar os hematomas, Sônia inventava desculpas para os familiares, dizendo que um ventilador tinha caído em cima dela ou que o cachorro a havia derrubado. Ela chegou a chamar a polícia algumas vezes.

Mas foi só neste ano, após a morte da mãe, que teve coragem de denunciar o agressor, pedir uma medida protetiva e se divorciar. "No momento em que a polícia apareceu, ele era outro homem. Ele nunca imaginou que eu chegaria ao ponto de denunciar. Na verdade ele é um frouxo. E eu não imaginei que fosse tão forte."

"A coragem dos agressores é quando eles estão sozinhos com as vítimas. Quando veem que podem ser presos, ficam com medo. A medida protetiva tem funcionado", afirma Carol Braz, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Amazonas.

Braz lembra que a violência doméstica não é só física. Pela lei Maria da Penha, pode ser também psicológica (ameaças, vigilância constante), moral (xingamentos, calúnias), patrimonial (controlar o dinheiro da mulher, destruir bens pessoais) e sexual.

Ela diz que faltam políticas públicas que permitam que as mulheres tenham condição de sair da relação. "Não é só a gente dizer: ‘denuncie, rompa esse ciclo de violência, seja independente’. Na prática, como ela vai trabalhar se o Estado não garante creche para os filhos, escola em tempo integral, acesso a planejamento familiar? Ela precisa ter condições de buscar essa autonomia."

'Rota de fuga'

Em 2020, apenas R$ 35 milhões dos R$ 120,8 milhões do orçamento para políticas de proteção a mulheres foram executados, mostra um levantamento da organização Think Olga. "Olhando para a curva ano a ano de 2014 a 2020, o que tem havido é um decréscimo de gastos na pasta de políticas para as mulheres, enquanto os casos de violência contra elas só aumentam", diz o relatório.

A pesquisa do FBSP sobre as mulheres na pandemia confirmou que a autonomia financeira pode ser "uma rota de fuga para a violência doméstica". "Imaginávamos que o confinamento com o agressor fosse o fator determinante, mas o que elas mais frisaram foi a dependência econômica, a perda de emprego e renda", diz Samira Bueno.

Ela cita outros obstáculos, como a revitimização sofrida nos órgãos da Justiça ao denunciar, a falta de delegacias especializadas em 90% dos municípios e o vínculo da vítima com o agressor. "É uma relação afetiva. Romper o ciclo da violência é um caminho tortuoso, é comum que leve muitos anos."

Sônia Oliveira, que se divorciou após décadas de agressões, diz que dói ver que "o tempo passou" por ela. Mas hoje sente que está "de pé". "Olhei para trás e vi que eu não tive vida. Ele nunca pegou na minha mão, eu nunca andei de braço dado com um namorado", diz. "Mas eu quero chegar a sorrir ainda, né?"

DENUNCIE

Em caso de emergência, ligue para a polícia (190) ou denuncie em uma delegacia (pode ser Delegacia da Mulher, se houver, ou em qualquer outra).

Qualquer pessoa pode denunciar casos de violência contra a mulher pelo Ligue 180 (basta teclar 180 de qualquer telefone em qualquer lugar do país). O atendimento, que é gratuito e funciona 24 horas, encaminha as denúncias aos órgãos competentes e informa sobre serviços especializados, como casas de apoio e delegacias.

Especial Gênero: Feminino

Métodos e bastidores

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.