Descrição de chapéu Gênero: feminino

Proibido para meninas menores de 16, casamento precoce é naturalizado no Brasil

Brasil ocupa 5º lugar no ranking mundial de uniões desse tipo, apesar de grande subnotificação

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A jovem Milena (nome fictício), 20, que se casou aos 14 anos em Belém Mathilde Missioneiro/Folhapress

Belém

"Tinha muitas coisas para eu fazer, e eu não quis. Não tinha cabeça, não queria ser nada da vida. Nunca tinha pensado em ser isso ou aquilo." Aos 20 anos, sete deles dedicados a um companheiro oito anos mais velho que ela, Milena (nome fictício) avalia que hoje faria outras escolhas que não a de viver, ainda aos 14 anos de idade, como se fosse casada.

Seguindo o roteiro típico de meninas envolvidas em casamentos precoces, Milena largou os estudos, se isolou numa rotina de cuidados e afazeres domésticos, engravidou.

Nunca havia tido aulas de educação sexual na escola de um bairro pobre de Belém (PA), onde frequentou metade do ensino fundamental. Por isso, mesmo mantendo relações sexuais desprotegidas havia meses, ela diz ter ficado surpresa ao ser informada de que estava grávida.

Sem formação, sem renda e sem um projeto de vida, Milena se tornou totalmente dependente do companheiro e de suas demandas. "Eu deixei tudo pra ficar cuidando dele: estar em casa, arrumando as coisas, lavando roupa, fazendo almoço", conta ela, moradora de uma casa sobre palafitas. "Ele dizia que eu não precisava trabalhar porque já me dava tudo. E, por isso, achava que podia fazer o que quisesse", admite.

Gênero: feminino

Série discute, em oito minidocumentários e reportagens especiais, diferentes aspectos da violência contra a mulher no Brasil

Naturalizado e subnotificado, tão complexo quanto invisível, o casamento infantil é definido como qualquer união, formal ou informal, que envolva alguém com menos de 18 anos. Em mais de 94% dos casos, esse alguém é uma menina.

Sob o manto de algum consentimento, seja dela, seja de sua família, a união precoce articula vulnerabilidades sociais, raciais e de gênero. Ela rouba uma fase importante do desenvolvimento e amplia as desvantagens de meninas e mulheres, limitando ainda mais suas trajetórias de vida educacional e profissional e tornando-as mais suscetíveis à violência doméstica, seja ela física, psicológica, sexual ou financeira.

Por isso, eliminar casamentos prematuros é parte dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), dentro da meta número 5: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.

Amigar, juntar, ajuntar, viver junto, morar junto, amasiar. Essas uniões em geral refletem as opções restritas disponíveis para meninas em situação de vulnerabilidade, ancoradas em normas sociais que ditam papéis bem definidos para meninas e mulheres: cuidadoras, submissas, donas de casa, mães. Nesse contexto, o casamento sempre teve lugar de destaque.

"No Brasil, o casamento precoce é um fenômeno adolescente que ocorre, em média, aos 14 ou 15 anos, o que não quer dizer que não haja meninas se casando aos 12 anos", explica a pesquisadora Viviana Santiago, ativista pelos direitos das meninas.

"Esse é um fenômeno multicausal e invisibilizado porque seu fio condutor é a violência de gênero já que ele atinge majoritariamente meninas, para quem o casamento já era considerado um destino. O fato de ele acontecer mais cedo, portanto, é visto como algo natural."

Com isso, diz Viviana, quase ninguém entende a união precoce como uma violência, fruto da negação de diversos direitos dessas meninas: educação, segurança alimentar e, especialmente, direitos sexuais e reprodutivos.

É preciso enxergar a violência implícita no casamento infantil: as meninas assumem responsabilidades excessivas no âmbito doméstico, perdem sua rede de apoio e a convivência com seus pares, ficando mais vulneráveis a diversos tipos de violência

Gabriela Goulart Mora

oficial de desenvolvimento e participação de adolescentes do Unicef no Brasil

"Precisamos desnaturalizar essas uniões precoces e atuar numa mudança cultural e estrutural para que as trajetórias das meninas sejam plurais, com todos os direitos garantidos para o seu desenvolvimento", diz Gabriela Goulart Mora, oficial de desenvolvimento e participação de adolescentes do Unicef no Brasil.

"É preciso enxergar a violência implícita no casamento infantil: as meninas assumem responsabilidades excessivas no âmbito doméstico, perdem sua rede de apoio e a convivência com seus pares, ficando mais vulneráveis a diversos tipos de violência, inclusive a sexual", aponta.

Só em 2019, mais de 80.829 meninas de até 19 anos se casaram oficialmente no Brasil, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) —169 delas tinham menos de 15 anos de idade.

Como as uniões nessa faixa etária dificilmente são registradas, como foi o caso de Milena, são outros raros levantamentos sobre o tema que revelaram a prevalência do casamento infantil no Brasil.

"A gente só tem ideia de parte do fenômeno porque tem uma subnotificação gigantesca", explica Raíla Alves, gerente de gênero e empoderamento econômico da Plan International, organização que atua internacionalmente na prevenção e no combate ao casamento infantil.

Como a gravidez na adolescência muitas vezes é causa ou consequência de uma união precoce, dados de nascidos vivos de mães adolescentes sugerem o tamanho da subnotificação.

Em 2020, foram registrados 380.778 nascidos vivos de mães adolescentes, sendo 17.526 de mães com idade entre 10 e 14 anos, segundo o Ministério da Saúde.

Outro estudo do Ministério da Saúde perguntou a mulheres de 20 a 24 anos, em 2006, quando elas tinham se casado, formal ou informalmente: 1 a cada 4 respondeu que antes dos 18 anos.

Isso faz do Brasil o quinto país no mundo no ranking absoluto de casamentos precoces. O país fica atrás apenas da Índia, Bangladesh, Nigéria e Etiópia, onde a prática envolve crianças ainda menores em uniões arranjadas e ritualizadas.

O quadro tende a se agravar com a pandemia. A organização internacional World Vision aponta que os casamentos infantis dobraram em 2020 em relação ao ano anterior em alguns dos países que encabeçam o ranking global, e estimativas de agências da ONU (Organização das Nações Unidas) também apontam para um aumento dessa prática.

A principal hipótese para esse crescimento é o aumento da pobreza. Meninas de famílias pobres têm duas vezes e meia mais chance de se casarem antes dos 18 anos do que aquelas de famílias com mais recursos, segundo o projeto Girls Not Brides (meninas e não noivas, em tradução livre do inglês).

"Aqui na região, quando uma menina engravida, a família empurra ela para o casamento porque, do contrário, é uma boca a mais para alimentar em casa", explica a ativista paraense Rebeca Souza, cuja origem numa comunidade cigana a doutrinou para o casamento precoce.

A ativista Rebeca Souza, criada em comunidade cigana no Pará - Mathilde Missioneiro/Folhapress

"No meu povo isso é muito comum. Existe todo um contexto que faz as meninas acreditarem que esse casamento é uma boa", diz. "Não sou contra o casamento! Mas acho ruim quando a gente cresce acreditando que ele é o nosso único destino. Fica muito difícil de se ver fora dele", explica ela, que já teve um projeto de empoderamento de meninas em populações ribeirinhas da capital paraense, interrompido por falta de financiamento.

Por outro lado, diz ela, em certos grupos, particularmente em comunidades muito religiosas, a sexualidade só pode ser experimentada no casamento, o que impulsiona meninas a se casar cedo simplesmente para poder transar.

"Observamos que muitas meninas, por questões estruturais, são incentivadas a morar com o parceiro e a estabelecer uma união desde muito cedo", afirma Raíla, da Plan International. "Estamos falando de normas culturais que são nocivas, sexistas e racistas e que colocam o casamento como algo preventivo: ‘pelo menos ela não está à toa’, ‘pelo menos não está roubando’."

A força desse tipo de ideia fica evidente na reprodução feita por algumas mulheres para justificar sua união precoce. "O casar cedo, que muita gente acha que é muita responsabilidade pra mim, foi bom porque eu poderia estar na rua, fazendo coisa errada, usando droga", afirma Maria (nome fictício), 18, que se casou aos 16 anos na região da Grande São Paulo para escapar da violência física imposta por sua mãe.

"Eu era obrigada a cuidar dos meus irmãos, dois bebês gêmeos. E minha mãe chegava em casa bêbada e me agredia. Pra mim, foi um alívio me casar. Foi um jeito de fugir daquela situação", admite ela, que tem uma filha de 1 ano e, por isso, vai deixar a faculdade para algum lugar do futuro.

Muitas meninas, no entanto, encontram no casamento precoce não um porto seguro, mas uma nova experiência de violência. Globalmente, aquelas que se casam antes dos 15 têm 50% mais chance de sofrer violência por parte do parceiro do que aquelas que se casaram depois dos 18 anos.

No Brasil, essas uniões foram proibidas para menores de 16 anos apenas em 2019, com lei que alterou o Código Civil. Antes disso, era permitido casar em casos de gravidez adolescente, ou de acordo com autorização dos pais ou autoridade judicial.

Ainda assim, ter relações sexuais com menores de 14 anos sempre foi considerado crime sexual contra vulneráveis. E até 2005 vigorava no país uma exceção ao artigo 107 do Código Penal que autorizava a união formal com crianças e adolescentes para que alguém maior de 18 anos pudesse escapar de uma punição por crime sexual. Ou seja, era possível que meninas abusadas sexualmente fossem obrigadas a se casar com seus agressores, algo mais comum entre adolescentes em situação de vulnerabilidade social.

"Apesar de avanços nos tribunais, ainda ocorrem decisões que reforçam opressões, como o machismo", explica a advogada Caroline Leal, que foi assessora jurídica em vara especializada em crimes sexuais contra crianças e adolescentes no Rio Grande do Sul. "Em alguns casos, um estupro de vulnerável era declarado como consentido pela menina e, com isso, tudo se resolvia."

Segundo ela, a questão do casamento infantil perpassa também o racismo. "Porque mulheres negras ainda não temos acesso a melhores condições econômicas e pelo fato de a mulher negra ser hipersexualizada e objetificada desde cedo", avalia. "Uma mulher que cresce em vulnerabilidade econômica já cresce sem perspectiva e tem dificuldade de sonhar, o que faz com que enxergue o casamento como uma boa saída."

Eu era obrigada a cuidar dos meus irmãos, dois bebês gêmeos. E minha mãe chegava em casa bêbada e me agredia. Pra mim, foi um alívio me casar. Foi um jeito de fugir daquela situação

Maria (nome fictício)

18 anos

Para algumas meninas, de fato, o casamento precoce se mostra como a garantia de destino supostamente seguro diante de um futuro incerto e sem perspectivas. Para outras, ele se mostra mesmo como uma saída: da pobreza extrema, do abuso sexual dentro de casa, do castigo físico ou de restrições muito severas impostas por famílias religiosas.

Foi o caso de Débora Maria da Silva, 62, excomungada pelo pai por usar calças jeans e passar a tesoura nos cabelos longos, típicos de algumas denominações pentecostais. "Eu queria ir para o baile também, e não só para a igreja", lembra ela, que aos 14 anos foi morar com o pai de seus três filhos.

"Não era a liberdade que eu procurava, porque eu ficava dentro de casa e ele ia pra rua, pra baile, pra tudo o que é lugar, sempre sozinho", lembra. "Não são direitos iguais", indigna-se ela, que teve um filho assassinado durante os crimes de maio de 2006, em São Paulo.

Fundadora do movimento Mães de Maio, Débora conta uma história que, mesmo tendo ocorrido 40 anos antes, se parece com a de Milena, 20. Nos dois casos, seus companheiros não queriam que elas trabalhassem.

"O meu primeiro marido não queria. E, quando a gente não trabalha, fica sujeita a tudo o que o homem acha que tem direito porque ele que sustenta", diz Débora. "É um amor de propriedade que, quando você fala ‘cansei’, vêm várias intimidações", avalia Débora.

Por trás dessa dinâmica estão ciclos que reproduzem sistemas de dominação e que perpetuam a desigualdade de gênero que Débora assistiu acontecer com suas duas filhas ainda meninas, assim como Milena soube ter acontecido com sua mãe.

A saída para estes ciclos, avaliam Débora e Milena, passa necessariamente pela educação. "Minha filha parou de estudar, como eu, e virou faxineira, como eu fui durante tanto tempo", conta Débora.

Segundo Gabriela, do Unicef, como no casamento precoce a educação deixa de ser a prioridade na vida da menina, aumentam as chances de reprodução do ciclo de pobreza, gravidez na adolescência e insegurança financeira e alimentar.

"É a maior ilusão do mundo para uma mulher casar cedo. Uma cilada", resume Débora. "A ilusão é a de arrumar um homem que ama ela, vai dar tudo pra ela... É fugir da miséria ou buscar liberdade. Mas são poucas as que encontram isso de verdade."

DENUNCIE

Qualquer pessoa pode denunciar casos de violência contra a mulher pelo Ligue 180 (basta teclar 180 de qualquer telefone em qualquer lugar do país). O atendimento é gratuito e funciona 24 horas.

Sobre o especial Gênero: Feminino

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