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O Carnaval de rua público de São Paulo está sob ameaça

A prefeitura sinaliza que punirá os blocos que saírem sem autorização, apesar de o Carnaval ser protegido constitucionalmente como liberdade de expressão artística

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Nabil Bonduki

Ex-secretário de Cultura de São Paulo (2015-2016, gestão Haddad), professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e professor visitante Fulbright na Universidade da Califórnia

Juca Ferreira

Sociólogo e coordenador dos Seminários Cultura e Democracia, foi ministro da Cultura (2008-10 e 2015-16, governos Lula e Dilma) e secretário municipal de Cultura de São Paulo e Belo Horizonte

Guilherme Varella

Advogado, gestor cultural e pesquisador. Foi secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (2015-16) e assessor técnico e chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (2013-15)

São Paulo

A política pública do Carnaval de rua paulistano está ameaçada. A prefeitura abandonou os blocos, ameaça reprimi-los se desfilarem e autorizou o cerceamento do espaço público para eventos privados, contrariando as diretrizes orientadoras da festa, criadas na gestão de Fernando Haddad (PT).

A política visava valorizar os blocos carnavalescos, retirar as obstruções para os desfiles e disponibilizar a infraestrutura para o direito à folia. O Estado passou a organizar um Carnaval público, livre, gratuito e democrático, em colaboração com os blocos. "Descriminalizado", o Carnaval de rua floresceu: de 50 blocos em 2013 passou a 650 em 2020, atraindo milhões de foliões.

Agora ocorre uma inversão dessas diretrizes. A prefeitura se ausentou, deixando os blocos à deriva, enquanto realiza, no feriado de Tiradentes, os desfiles no sambódromo e libera o deus-dará das festas privadas no espaço público, contrariando o regulamento em vigor.

Foliões fantasiados se reúnem em boteco no bairro da Água Branca, na capital paulista, para festejar o Carnaval
Foliões fantasiados se reúnem em boteco no bairro da Água Branca, na capital paulista, para festejar o Carnaval; os blocos foram improvisados para driblar as restrições impostas à folia na rua - Rubens Cavallari - 28.fev.22/Folhapress

Em manifesto, os blocos defenderam o direito de desfilarem, mas a prefeitura afirmou que o Carnaval de rua estava cancelado e que os blocos só poderiam sair se pagassem a infraestrutura e tivessem autorização da PM. Assim, retrocede dez anos, reproduzindo a prática anterior à política construída na nossa gestão.

Mas não se pode cancelar uma expressão cultural. Se os artistas e foliões querem exercer seu direito à cultura, o poder público deve viabilizar as condições necessárias. Com as restrições da pandemia atenuadas, a prefeitura já devia estar dialogando com os blocos e formulando um plano emergencial de serviços, como banheiros químicos, organização do trânsito e limpeza das vias. Ao contrário, a cidade sofrerá um impacto indesejável.

O diálogo com os blocos, porém, inexiste. A política do Carnaval de rua perdeu sua dimensão cultural quando, em 2017, foi transferida da Secretaria da Cultura para as Subprefeituras. Tornou-se uma operação de caráter logístico e, cada vez mais, comercial, não contemplando a complexidade, a diversidade e a demanda social da festa.

A prefeitura sinaliza que punirá os blocos que saírem sem autorização, apesar de o Carnaval ser protegido constitucionalmente como liberdade de expressão artística. O direito de se manifestar independe de autorização do poder público, cuja responsabilidade é planejar e respaldar. Inverter essa responsabilidade é pernicioso para o Carnaval de rua.

Enquanto a festa pública sofre obstrução, as privadas em espaços emblemáticos contam com anuência e apoio, como dois megaeventos previstos para o feriado: o Festival de Carnaval Acadêmicos do Baixo Augusta – Vai Passar, no vale do Anhangabaú; e o Viva a Rua, no Monumento das Bandeiras (Ibirapuera).

Patrocinadas pela Ambev e Amstel, elas contrariam o decreto do Carnaval de Rua. São fechadas, cercadas, com inscrição e retirada de ingressos. Gratuitas, mas só entra quem se cadastrar, entregando seus dados pessoais. Ninguém entra com mochilas ou garrafas, dando aos organizadores o monopólio da venda de bebidas.

Proibir o cerceamento do espaço público é estrutural na política paulistana, impedindo a camarotização e a circuitização privada, como ocorre em Salvador. Evitou-se, assim, a exploração comercial das áreas públicas e qualquer discriminação.

O artigo 3º do Decreto 58.857/2019 é claro: "no Carnaval de Rua, não poderão ser utilizadas cordas, correntes, grades e outros meios de segregação do espaço que inibam a livre circulação do público ou constituam áreas privadas".

A (discutível) concessão do Anhangabaú não altera a norma, pois a área continua sendo espaço público. Se não for, consagra-se a percepção de que a prefeitura privatizou uma área simbólica de São Paulo.

Embora gratuito, o ingresso virtual monetiza os dados dos foliões, que entregam aos organizadores um banco qualificado para quem atua no ramo do Carnaval. Isso contraria art. 10º do decreto: em logradouros públicos, é proibida a "cobrança de ingresso ou exigência de qualquer valor para sua fruição". Na economia virtual, dados manipuláveis valem mais que dinheiro.

O cerco dá exclusividade de exploração comercial aos organizadores. O espaço público se torna uma arena de monopólio das cervejarias, que vendem seus produtos sem concorrência e sem regulação pública de preços.

Uma apropriação indevida não só do espaço, mas do próprio Carnaval de rua e de seus valores (sociabilidade, afetividade, liberdade, criatividade) pelo capital simbólico das empresas. É a ambevização do Carnaval de rua. Triste constatar que isso tem anuência da prefeitura que, simultaneamente, nega estrutura para os blocos, contrariando o caráter público, livre, democrático e gratuito do Carnaval de São Paulo.

A opção traz um precedente, jurídico e político, perigoso para o direito à folia. Atropela o regulamento e relega, ao Carnaval livre das ruas, a marginalização e a estigmatização, como ocorria antes de 2013 e que está se repetindo.

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