Funcionários denunciam internações forçadas na cracolândia pela Prefeitura de SP

OUTRO LADO: gestão Nunes afirma que serviço oferece acolhimento e tratamento; acusação foi feita em carta aberta sem assinaturas

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São Paulo

Funcionários do Redenção na Rua, programa da Prefeitura de São Paulo que faz atendimentos de saúde e assistência social a usuários de drogas, divulgaram nesta sexta-feira (10) uma carta aberta na qual denunciam supostas internações forçadas sendo realizadas na cracolândia, no centro da capital paulista.

Eles também reclamam da notícia da demissão da gestora Andrea Guerra, coordenadora do programa, e dizem que a organização social que administra o Caps (Centro de Atenção Psicossocial) da região, a Afne, atua de forma violenta e ineficaz.

Servidores afirmaram que a carta foi enviada a órgãos da prefeitura e, individualmente, ao secretário municipal de Projetos Estratégicos, Edsom Ortega, que coordena as ações de zeladoria e segurança na cracolândia.

O texto é assinado pela "Equipe Redenção na Rua", sem especificar o nome dos servidores que endossaram o documento.

Questionada, a gestão Ricardo Nunes (MDB) negou que as internações ocorram sem autorização judicial, e disse que o serviço denunciado por servidores "oferece acolhimento e tratamento integral e multidisciplinar para dependentes de álcool e drogas com o objetivo de reinserir os pacientes na sociedade do ponto de vista biopsicossocial e econômico".

Grupo de usuários de drogas na esquina da rua dos Gusmões com a avenida Rio Branco, na região central de São Paulo - Rubens Cavallari - 19.set.2023/Folhapress

A Afne, questionada por email e contatada por telefone na tarde desta sexta, não respondeu até a publicação deste texto.

As denúncias da carta são direcionadas ao Serviço de Cuidados Prolongados (SCP), que é realizado por servidores da Afne que trabalham no Caps IV Rendeção, na região.

Enquanto o programa Redenção trabalha com uma política de redução de danos —que foca no controle das consequências adversas do uso de drogas e na inclusão social do usuário, em vez da interrupção do uso de substâncias—, os servidores dizem que o SCP tem atuado para internar o máximo de pessoas compulsoriamente.

A carta afirma que a entidade descaracterizou a política municipal em relação à cracolândia e tem dificultado o trabalho de profissionais de saúde.

Há relatos de que funcionários do SCP pagam bebida alcoólica, comida e refrigerante aos usuários de drogas para que eles aceitem serem internados.

Há ainda um caso de suposta agressão a um dependente químico por um enfermeiro da equipe —a Secretaria Municipal de Saúde nega.

A carta dos servidores afirma que a política de internação forçada tem respaldo da coordenadora do SCP, Aglaé Amaral Souza. "Vemos que o cuidado em saúde dessas pessoas está sendo gerenciado por uma pessoa que enxerga apenas a dependência química, e não pessoas. Como já dito por ela, se tratam de psicopatas e que o lugar destes é estarem trancafiados", diz a carta.

A Folha já ouviu relatos nesse sentido de três servidores do programa, sendo que dois foram ouvidos antes da publicação da carta. Todos disseram que profissionais do SCP têm feito internações forçadas sem autorização judicial de usuários de drogas na região central.

Segundo dois desses servidores, as medidas são assinadas por psiquiatras que integram as equipes do serviço.

Um desses casos está registrado num boletim de ocorrência do dia 18 de março. O documento afirma que uma mulher grávida estava em "tratamento de dependência química de maneira compulsória" no Hospital Lacan, em São Bernardo do Campo, na região metropolitana de São Paulo.

O boletim faz menção a um mandado judicial para a internação, mas os servidores dizem que essa autorização não ocorreu e que, de qualquer forma, a condição dessa paciente não autorizaria esse tipo de medida

A internação compulsória ainda divide opiniões entre especialistas e costuma ser defendida apenas para casos gravíssimos, quando o usuário não consegue tomar uma decisão por conta própria e oferece perigo ao entorno.

A mulher fugiu da internação quando estava sendo levada ao Hospital da Mulher para um exame pré-natal, relata o documento. Uma servidora do Redenção nas Ruas afirmou que teve contato com a paciente após a internação forçada, e que ela relatou ter sido enganada.

A essa servidora do Redenção, ela teria contado que foi atendida no centro da capital com a promessa que seria levada para uma ultrassonografia e, quando se deu conta, estava há 10 dias internada em São Bernardo do Campo.

Três servidores afirmaram que não havia ordem judicial para a internação compulsória dessa paciente. A reportagem, em pesquisa no Tribunal de Justiça de São Paulo, também não encontrou qualquer processo desse tipo com o nome dela.

Pessoas que trabalham no Redenção contam que relatos de evasões da internação compulsória têm ficado mais comuns. Elas dizem que os usuários não chegam a completar os tratamentos, fogem das unidades de saúde e retornam ao uso de drogas na rua.

A carta também faz menção ao fato de que Aglaé Souza foi investigada pelo assassinato de um servidor público em 2007, quando era subsecretária municipal de Saúde em Salvador (BA). A acusação acabou arquivada.

Ela chegou a ser apontada como mandante do crime pelo Ministério Público da Bahia, mas o juiz do caso considerou que as provas eram insuficientes.

Em nota, a prefeitura afirmou que "a internação compulsória somente é deferida por juízes de direito, não sendo prerrogativa de médicos e de serviços de saúde a sua determinação", e que "todas alternativas disponíveis na abordagem junto aos pacientes são colocadas à disposição, como plano terapêutico, internação para desintoxicação e ainda encaminhamento para Hub de Cuidados em Crack e Outras Drogas, ou os SCPs".

"A adesão é voluntária" nesses serviços, diz a administração municipal.

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