Descrição de chapéu
Alalaô

Todas as fantasias

No calor, o corpo dela bronzeado suava nas lantejoulas

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Mariana Salomão Carrara

Escritora, é autora de ‘Se Deus Me Chamar Não Vou’ e ‘É Sempre a Hora da Nossa Morte Amém’ (ed. Nós)

Qual é melhor, essa ou essa? A voz dela toda juvenil antes das seis décadas de cigarro roufenhando as cordas, se eu pudesse sair deste lugar de volta para uma tarde escolheria esta em que tínhamos 17 anos e a Camila comparava duas fantasias para o baile de Carnaval no sindicato, viramos dois copinhos de cachaça sem respirar, no calor o corpo dela bronzeado suava nas lantejoulas e ela levantava os braços e assoprava as axilas delicadamente, eu amava aquele gesto.

A festa do sindicato era num galpão de péssima acústica e iluminação de futebol, as marchinhas estourando em caixas insuficientes, de vez em quando entrava por cinco minutos uma idosa bandinha de sopros, os confetes grudando no chão no açúcar embarreado de refrigerantes e solas de sapato. Era nossa festa mais incrível.

Agora aqui no abrigo eles põem colares havaianos nos idosos e pronto, está instalada a folia.

Máscara, confete e purpina em folia de Carnaval
Pixabay

Eu tinha um outro pavor, além de morrer cedo, que era casar virgem, e o Carnaval continha a proposta adequada pra evitar esse tipo de problema. A Camila achava divertido o meu propósito, disfarçando a sua elevadíssima conduta, ela no máximo chegaria ao seu casamento com uns estraguinhos, isso me apavorava, às vezes imaginava deixá-la de lado e procurar amigos artistas. Não sei, tinha a impressão de que artistas jamais foram virgens.

A Camila era um arraso naquele baile miserável, poderia escolher o rapaz que quisesse. Horas mais tarde, eu com os sapatos nas mãos e os pés empastados de confete molhado, um menino mais novo e mais baixo que eu e fantasiado de bebê me tirou para uma dança desajeitada enquanto me seduzia com sua imensa chupeta colorida pendurada no pescoço. Fingia que ia roçar o brinquedo na minha boca e eu ria deslavada, a cabeça pendendo para trás, a Camila se afastando um pouco num risinho cúmplice, e eu sabendo que aquele pequeno garoto tinha me escolhido em vez dela porque eu era o cálculo possível, ele ciente das suas próprias limitações, éramos esteticamente compatíveis e aquilo era a minha juventude.

Eu estava fantasiada de noiva, um vestido branco barato que rodava bonito quando eu girava no baile, a noiva que tinha alguns minutos para perder a virgindade antes do altar.

Depois de ouvir pouquíssimo o meu próprio corpo naquela barulheira, levei o bebê pela mão até o vestiário dos fundos, mamãe eu quero mamar continuou tocando abafado depois da porta, tivemos dificuldade em tirar a fralda, ele não tinha saído de casa pensando em tirar a fantasia, nem virgindades, quanto mais tudo parecia desagradável e sujo mais eu ia em frente animadíssima com o que é decadente, o galpão era o cenário perfeito e o jovem afobado era o contrário da libido, tudo naquela esfregação de azulejo suado escapava do campo dos impulsos e sentidos, entrava para algo mais conceitual.

Não conseguimos fazer com que a teoria fosse aplicável na prática, nenhuma das murchidões que perscrutei naquelas umidades se materializou em algo perto do que eu esperava, e a moça que eu era não contava com isso, tinha aprendido apenas que os rapazes estariam sempre ávidos por nós. Saí dali galopante cuspindo lantejoulas, a boca porca de lambidas desesperadas, eu não valia nem isso, não era essa a decadência que eu tinha buscado.

Reencontrei fácil a Camila rodopiando sozinha na pista esvaziada. Contei sem floreios, gritando por causa das marchinhas estouradas na caixa, contei toda a minha lassidão, não senti nada, o corpo parecia morto, mas encostei em tudo, estive em todos os lugares daquele menino ignóbil que eu não sabia o nome, frisei que não sabia o nome porque tudo que eu queria era horrorizá-la, queria que ela me condenasse, abominasse a mulher que eu começava a ser, e ao mesmo tempo procurasse em si uma fagulha desses caminhos, mas a Camila sempre foi tão boa e me abraçou, embriagadas, jovens. Ela articulou um consolo folião, as mãozinhas pra cima, no próximo Carnaval ia dar certo, que eu fosse paciente.

Caminhamos para a minha casa, a intenção era nos sentirmos tão adultas, autônomas, mas arrastei pela calçada um cabedal de fragilidades, Camila solitária dentro da melancolia dela que nunca foi a mesma que a minha, e tudo bem, entramos no banho e a água preta que escorria dos nossos pés e o cheiro festivo de cigarro alheio que escorria dos cabelos sob o chuveiro, nada disso era a decadência que eu buscava, depois do banho ela disparou a falar muitíssimo, era o que ela fazia quando queria adiar o fim da noite, e eu morrendo de medo de me casar antes de conhecer o sexo, e de morrer antes de tudo isso.

Camila encheu copos de água para nós e deitou-se na minha cama, eu ao lado no colchão no chão, virou-se na minha direção e fez um carinho descompromissado na minha testa, nas pálpebras fechadas grudadinhas de rímel, nossas melancolias ficaram sintonizadas por um instante e ela lamentou a morte recente de uma professora nossa, professores não podem de forma alguma morrer, e ela continuou o carinho no meu cabelo e comentou que no próximo Carnaval era melhor irmos sem salto alto, e eu senti que estava mesmo tudo bem, que eu podia suportar não saber o que ia acontecer na minha vida, o que ia ser de mim, desde que ela continuasse ali, que eu escolhesse todas as fantasias dela, que fôssemos sempre juntas.

Capítulo do romance 'É sempre a hora da nossa morte amém' (Editora Nós, 2021)

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