Descrição de chapéu
Alalaô

Um novo baile de máscaras

Fora de época, chega a folia celebrando sabe-se lá o quê: o alívio, o retorno, a vontade de superar as tantas dificuldades

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

As agulhas estavam prontas. Rodeadas de panos com as mais variadas cores, aguardavam a chegada das demandas no fundo dos barracões. Era tempo de coser o Carnaval, sabiam as costureiras.

Repentinamente, as linhas do destino teceram outro caminho. Não haveria festejo. Não haveria sustento. A saída foi trocar as máscaras volumosas e lantejouladas por aquelas que viriam a garantir sobrevivência nos anos por vir. Um outro baile de máscaras se arranjou. Nele, desfilaram com os sorrisos guardados pelas ruas aqueles que não podiam parar nem mesmo na época em que a festa era do povo. Ao povo, a luta —um samba-enredo que não muda.

Dois anos depois e elas, aquelas mesmas mulheres que por décadas vestiram foliões retomam seus postos. Nada é como antes. Nunca mais será. As marcas deixadas pelos calendários sem Carnaval levam tempo para que o tempo as leve —e lave dos panos tais manchas de desconsolo. Um tom diferente para as intérpretes das entrelinhas. Nas avenidas estará o resultado de toda sua resistência ao longo do lapso recente.

Com o cancelamento do Carnaval por causa da pandemia de Covid-2021, o Sambódromo do Anhembi ficou praticamente vazio ano passado; agora volta a contar com o público
Com o cancelamento do Carnaval por causa da pandemia de Covid-2021, o Sambódromo do Anhembi ficou praticamente vazio ano passado; agora volta a contar com o público - Edson Lopes Jr. - 13.fev.21/UOL

Se é no Carnaval que as emoções se expressam na saturação das vontades da carne e do espírito, o que há de ser posto na avenida em muito carregará também o que esteve contido nos corações cansados que retomam as batidas nos barracões. A mistura inevitável de alegria pela volta dos desfiles e medo da volta de um mal que ainda não se foi por completo abre alas para o recomeço tentar se fazer.

Um outro baile de máscaras. Cobrindo os sorrisos ou as caras fechadas de preocupação, estes novos acessórios nada alegóricos compõem a realidade das muitas e muitos a parir o Carnaval às custas do esforço que faz suar em silêncio. Não contrastam com as outras, aquelas exuberantes que coroam cabeças. Complementam-se. Com ou sem obrigatoriedade de se proteger do inimigo invisível, a ordem segue a mesma: é preciso sobreviver.

Fora de época, dividindo opiniões sobre sua realização, marcando mais um episódio da história deste país que vive seus piores momentos, chega a folia celebrando sabe-se lá o quê: o alívio, o retorno, a vontade de superar as tantas dificuldades, a esperança mirrada, o fruto do trabalho que põe no prato a comida dos trabalhadores por trás da festa do povo? Não há o que comemorar? Há? Debaixo das máscaras, nenhuma fantasia, nenhum mistério. As bocas respondem aquilo que não lhes cabe mais. Falam a realidade. O Carnaval acontece porque as pessoas continuam.

O que sobra dos olhos sobre a faixa que protege a face expressa o pouco do muito que carregaram carnavalescos e carnavalescas desde que pularam a celebração sem celebrá-la. Nos dias de desfile, novamente as lições das escolas de samba sobre arte, cultura, sociedade, política serão traduzidas na corporeidade das passistas. Em muitas casas seguirá a tradição de adentrar madrugada iluminando a sala com suas TVs multicoloridas. Do outro lado da tela, no inverso dos sambódromos, os versos sussurrados das composições que cantam os sambas vários. O Carnaval acontece porque não deixaram o samba morrer.

As ruas ainda carecem de foliões. O novo início também revela velhos impasses. Blocos faltam, poder público falta e de ausências e falhas se expõe uma chaga antiga: na carne do povo ainda arde a impossibilidade de celebrar o popular. A cidade mudou. Nos rastros do ontem, onde se vivia vielas e avenidas de uma maneira única —como labirintos nos quais inexistiam endereços e tudo era o todo no mesmo espaço—, os quereres eram outros. Agora, novos quereres terão de ser compassados. É preciso aprender a dançar neste baile de máscaras atípico.

Faz frio, mas há sol. É outono, mas traz sensação térmica de verão. Persiste a pandemia, mas também a vacinação. A contradição é inerente ao Carnaval tanto quanto à humanidade. Expressa-se o que há à flor da pele. Se ele é uma força inevitável dentre as tantas forças inevitáveis que compõem a sociedade, deixe-o passar. Quando for necessário para o bem dos seus e suas, este Carnaval terá de se permitir fazer falta.

As costureiras arrematam as últimas máscaras. Observam o resultado de seu trabalho. O ar abafado envolve seus corpos e mentes. Suor silencioso. Parte de si estará na avenida, outra nos bastidores e uma última em seus lares. Terminaram de coser o Carnaval. Debaixo das alegorias que cobrem seus rostos, alegria e preocupação. Pessoas que continuam porque o Carnaval acontece.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.