Acolhimento familiar emperra com a falta de candidatos em SP

Somente 63 famílias estão aptas na capital paulista atualmente para exercer a guarda provisória de uma criança ou adolescente

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São Paulo

A sala da advogada Patrícia Rodrigues de Andrade, depois de anos, voltou a ser decorada por brinquedos depois que ela e o marido, Paulo, decidiram entrar em um programa para acolher crianças em casa —desde fevereiro, o casal cuida de uma dupla de irmãos de 6 e 8 anos.

Acolhimento é o nome dado para a guarda temporária de crianças e adolescentes que estão afastados do convívio com os pais biológicos por algum motivo, como abandono ou negligência. É diferente, portanto, da adoção, que tem um caráter mais permanente.

O ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) prevê, desde 2009, que o acolhimento familiar é preferível ao encaminhamento para instituições que cuidam de menores de 18 anos, como o Saica (Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes) em São Paulo.

A família de Jeferson e Silvanei acolheu Ana, de 16 anos, em São Paulo - Carlos Petrocilo - 27.mai.2022/Folhapress

Apesar disso, a modalidade é tímida no país. Dados do Tribunal de Justiça de São Paulo apontam que, no mês passado, 59 crianças/adolescentes foram abrigados por famílias e 858, encaminhados às instituições.

Na capital, a prefeitura deu início a um programa para a área somente em 2019, por meio do convênio com organizações da sociedade civil. Estas instituições são as quem preparam e dão suporte à família acolhedora. O processo é criterioso e leva, em média, seis meses.

"É um programa ainda jovem, criado no âmbito da pandemia, que dificultou a aproximação de pessoas, e ainda não alcançou todo o seu potencial. A gente precisa de divulgação", afirma Carlos Bezerra Júnior, secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social da capital.

Uma das principais preocupações de quem atua no setor é observar se o candidato consegue distinguir a guarda provisória da adoção. Como regra, a pessoa não pode estar inserida no Cadastro Nacional da Adoção.

"O afastamento dos pais ainda que diante de uma ação de negligência é muito doloroso para a criança. Por isso, a família acolhedora, além de ser uma guardiã, tem que respeitar a história de vida daquela criança ou adolescente", diz a psicóloga Márcia Machado Wightman Lopes, com quase 30 anos de experiência na Vara da Infância e Juventude.

Para especialistas envolvidos na rede de proteção, a mudança das crianças depois de serem acolhidas é perceptível.

"A criança acolhida tem um desenvolvimento psicomotor melhor em razão do afeto, a relação pessoal é muito importante", diz a juíza Maria Silvia Gomes Sterman, que atuou na Vara da Infância e Juventude de Santo Amaro.

A falta de publicidade e de políticas públicas que estimulem à prática, além do desafio de acolher um crianças/adolescentes e, meses depois, ter que se separar, ameaçam a modalidade.

Sara Maria Soares Luvisotto, coordenadora do serviço no instituto Fazendo História, afirma que 353 famílias se inscreveram no último processo seletivo e apenas 12 delas foram certificadas.

"A avaliação para habilitar essas famílias é a cereja do bolo. Uma pessoa que tem dificuldades com o luto, o término de um relacionamento ou com preconceitos não conseguirá acolher. É preciso ter abertura para entender a família de origem", diz Sara.

Em São Paulo, atualmente 2.950 crianças e adolescentes convivem em unidades do Saica, enquanto 32, o equivalente a 1%, estão em situação de acolhimento familiar, de acordo com a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS).

Somente 63 famílias estão aptas na capital para exercer a guarda provisória de uma criança. O tempo de permanência, previsto pelo ECA, é de 18 meses, mas pode ser renovado por decisão judicial.

Nesse período, a Justiça tenta restabelecer o vínculo da criança com os pais e, em último caso, com a família extensa —avós, tios, primos. Caso nenhuma tentativa tenha êxito, seu nome será inserido no Cadastro Nacional da Adoção.

"A primeira tentativa é promover retorno à família biológica. O acolhedor deve, inclusive, fazer esforços para ajudar a restabelecer o vínculo entre a criança e os pais", afirma Iberê de Castro Dias, juiz assessor da Corregedoria Geral da Justiça em assuntos da Infância e da Juventude.

Na prática essa convivência dura, em média, um ano. Nesse período, a Prefeitura de São Paulo oferece para o voluntário um salário mínimo por mês para cada criança atendida.

"Estudos mostram que o acolhimento institucional acarreta defasagem à formação psíquica, ao desenvolvimento de habilidades socioemocionais e, a partir disso, a ideia de criar uma família acolhedora", explica Dias.

"Em um abrigo com até 15 crianças nem sempre são os mesmos cuidadores. Por mais que façam um trabalho bem-feito, o acolhimento familiar faz a diferença", completa o juiz.

Após o fim do acolhimento, cada voluntário passa por um período de descanso, o que reforça ainda mais a necessidade de ampliar essa rede.

"A família ganha um recesso de dois a seis meses para se recuperar, é um processo de luto", afirma Delton Hochstedler, responsável pelo serviço no instituto Pérolas.

Para tentar expandir o número de voluntários na cidade de São Paulo, ​um projeto de lei, apresentado pelo vereador Gilberto Nascimento Júnior (PSC), prevê que a prefeitura paulistana promova campanhas publicitárias na televisão, jornais e rádios, além de exposição do tema em espaços públicos.

O casal de irmãos acolhidos por Patrícia e Paulo desde fevereiro deste ano tem colecionado avaliações positivas na escola. Toda a família, diz ela, envolveu-se no processo, incluindo os filhos biológicos do casal.

"Meu filho expôs a situação em um grupo e precisou fazer três viagens de carro para buscar doações de roupas, calçados e brinquedos. Minha mãe liga para convidá-los a comer o bolo de que gostam", conta Patrícia.

Silvanei e Jeferson cumprem o primeiro acolhimento e pretendem seguir no programa - Carlos Petrocilo - 27.mai.2022/Folhapress

Diferentemente dela, que preferiu acolher crianças mais novas, o casal Jeferson Fernandes Bezerra e Silvanei de Almeida Farias decidiu procurar uma adolescente depois que a filha biológica do casal, de 16 anos, pediu para ter companhia de uma garota da mesma idade.

A ideia deu certo e, desde outubro do ano passado, Ana (nome fictício), 16, passou a morar com a família na zona sul de São Paulo, depois de três anos vivendo em abrigos.

O perfil de Ana, negra e adolescente, não é dos mais procurados por quem pretende adotar uma criança e até mesmo para o acolhimento temporário.

"Ela chegou com muito medo de que, ao completar 18 anos, deverá ter garantido um emprego para poder pagar uma moradia. Mostramos que não estará sozinha, vamos juntos até conseguir o seu cantinho", conta Silvanei.


Família acolhedora

Medida protetiva que garante a guarda temporária de crianças e adolescentes, que estão afastados do convívio com os parentes

O que diz a lei O ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) prioriza o acolhimento familiar em vez da inserção em abrigos, até que seja restabelecida a relação da criança com a família de origem ou seja encaminhada para adoção

Quem pode acolher Pessoas maiores de 18 anos, independentemente do gênero ou estado civil. É preciso estar em boas condições de saúde física e mental, livre de dependência química, não apresentar antecedentes criminais, possuir uma situação financeira estável e manter um ambiente saudável

Diferença da adoção O acolhimento familiar é temporário. Por isso, o acolhedor não pode estar inserido no Cadastro Nacional de Adoção. Aliás, ele pode ajudar a criança a preservar o vínculo com seus pais, enquanto a guarda da criança é discutida judicialmente

Como participar? Os interessados devem entrar em contato com os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).

Fontes: Prefeitura de São Paulo e CNJ (Conselho Nacional de Justiça)

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