Descrição de chapéu aborto

Ministério da Saúde deixa ONG's de fora de audiência e reforça posição antiaborto de cartilha

Convidada pela pasta, a juíza Joana Zimmer, investigada por induzir menina de 11 anos a manter gravidez, não compareceu; imagens de fetos e bonecos de plástico foram exibidas na reunião

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Brasília

A audiência pública realizada pelo Ministério da Saúde nesta terça-feira (28) respaldou a posição antiaborto que aparece na cartilha lançada pelo governo federal no início deste mês.

Dos 20 participantes, 13 endossaram a opinião da Secretaria de Atenção Primária do Ministério da Saúde, responsável pelas novas diretrizes.

O guia contraria o Código Penal ao afirmar que "todo aborto é crime" e apresenta informações incorretas ou distorcidas sobre o procedimento médico. Cerca de 80 entidades pedem a revogação do documento.

A juíza Joana Ribeiro Zimmer, que está sendo investigada por dificultar o aborto da criança de 11 anos vítima de estupro em Santa Catarina, foi convidada pela pasta, mas não compareceu.

Um defensor público da União que tentou impedir a realização do procedimento médico na menina também teve direito à fala. Danilo de Almeida Martins afirmou na audiência que estava representando um instituto religioso, e não a DPU (Defensoria Pública da União).

O senador Eduardo Girão mostra reprodução em plástico de um feto durante audiência pública sobre aborto
O senador Eduardo Girão mostra reprodução em plástico de um feto durante audiência pública sobre aborto - Pedro Ladeira/Folhapress

O encontro também contou com a participação da ex-assessora do governo Donald Trump Valerie Huber —conhecida pela articulação por uma "coalização antiaborto"— e de políticos como a deputada federal bolsonarista Bia Kicis (PL), a deputada estadual Janaína Paschoal (PRTB) e o senador Eduardo Girão (Podemos).

Girão e outros defensores da cartilha levaram bonecos de plástico e projetaram imagens de fetos. Uma das médicas convidadas mostrou fotos de bebês saudáveis e de fetos com menos de 500 g para defender o fim do aborto legal.

A professora Lia Zanotta Machado, representante da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), destacou que o ministério ignorou os pedidos para que a audiência pública fosse adiada e deixou de fora as ONG’s que defendem os direitos das mulheres.

Defensorias públicas, entidades que lidam com o tema, grupos de estudos e clínicas jurídicas de universidades brasileiras enviaram ofícios ao Ministério da Saúde pedindo o adiamento da audiência pública —convocada com apenas uma semana de antecedência.

"Faltaram inúmeras instituições que são favoráveis à autonomia das mulheres. Houve um debate restrito", afirmou Lia Zanotta Machado. O presidente da SBPC também havia solicitado que a reunião fosse remarcada.

Após a audiência pública, a campanha Cuidem De Nossas Meninas —encabeçada por entidades como o Instituto de Bioética Anis e a Rede Feminista de Saúde— afirmou que a reunião foi realizada "a toque de caixa" e que "o credenciamento de inúmeras organizações da sociedade civil engajadas no tema dos direitos reprodutivos foi negado".

"Na audiência, ouvimos 13 participantes comprometidos com movimentos ideológicos pela criminalização do aborto, enquanto apenas 7 participantes se ampararam em discussões com amparo científico ou jurídico, pela manutenção do direito ao aborto, previsto em lei desde o Código Penal de 1940", diz trecho da nota.

Nesta segunda-feira (27), celebridades como as atrizes Dira Paes, Camila Pitanga e Ana Hikari também se manifestaram nas redes sociais contra a cartilha e a posição do Ministério da Saúde.

A audiência pública ocorreu com segurança reforçada, em meio a repercussão do caso da menina de 11 anos impedida de abortar em Santa Catarina e do relato da atriz Klara Castanho, que se viu obrigada a contar que foi vítima de estupro e entregou o bebê para adoção.

A segurança foi reforçada pela Polícia Militar. O prédio foi cercado por grades, e, para entrar no auditório, era preciso passar por detectores de metais —um esquema poucas vezes visto na pasta desde o início do governo de Jair Bolsonaro (PL). Não houve manifestações.

Apenas funcionários, convidados, fotógrafos e cinegrafistas puderam entrar no auditório durante a audiência pública. O ministério alegou que o espaço era pequeno e que a reunião estava sendo transmitida ao vivo pela Internet.

Prédio cercado por grades
Prédio do Ministério da Saúde cercado para audiência pública sobre o manual de atenção técnica para casos de aborto, nesta terça (28) - Pedro Ladeira/Folhapress

Diante das críticas de que a audiência foi convocada com pouca antecedência, o secretário de Atenção Primária da pasta, Raphael Câmara, afirmou que muitas pessoas com posicionamento diferente do dele foram convidadas e não compareceram, "mesmo após reiteradamente" chamadas.

"Como em qualquer audiência pública, sempre há muito mais pessoas querendo participar do que o permitido", disse. Câmara rechaçou a possibilidade de fazer um segundo encontro e falou que o ministério vai ler as mais de 3.000 sugestões enviadas por email.

Após o evento, o secretário disse à imprensa que a versão definitiva do guia será publicada em até dois meses e que pretende manter a afirmação de que "todo aborto é crime".

Durante a audiência pública, Raphael Câmara citou o caso de um bebê que sobreviveu após nascer com 200 g —um evento extremamente raro, segundo ele próprio— e declarou que o aborto não é um problema de saúde pública no Brasil.

"O manual anterior [afirmava que] o abortamento representa um grave problema de saúde pública. A gente precisa discutir o que é um grave problema de saúde pública. Se você interpretar qualquer doença que provoca mortes como um grave problema de saúde pública, ok. Há milhares e milhares de doenças que entrariam nessa classificação", afirmou.

A diretriz do governo Bolsonaro afirma que "todo aborto é crime" e o que ocorre é que não há punição penal quando o procedimento acontece dentro das hipóteses previstas em lei. O aborto é legal no Brasil em caso de estupro, risco de morte para a grávida e anencefalia do feto —esta última por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).

Nesta terça (28), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, foi na mesma linha e minimizou as críticas ao guia, publicado no dia 7 de junho.

"A posição do ministério da Saúde é a posição da lei. O Código Penal brasileiro, da década de 40, estabelece o aborto como crime", declarou ele em Portugal, onde participa de um fórum na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

A representante da Defensoria Pública da União, Daniela Correia, disse que a afirmação de que não existe aborto legal no Brasil, mas sim aborto com excludente de ilicitude, está juridicamente errada.

"Quando há excludente de ilicitude, não há crime. Não se pode dizer que existe crime de aborto legal porque não é crime."

A Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) pediu a revisão do documento durante a audiência pública.

"Queria propor que esse manual seja revisto, revisado, junto com a Febrasgo e outras entidades, antes que ele seja amplamente divulgado", afirmou Osmar Ribeiro Colas, da comissão nacional especializada em violência sexual e abortos previstos em lei da entidade.

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