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Chico Felitti

São Paulo se pinta, mas só por um dia

Cidade é como um rosto sem maquiagem, que se produz apenas para a Parada LGBT+

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Chico Felitti

Repórter ganhador dos prêmios Petrobrás e Comunique-se de jornalismo, é autor de “Ricardo & Vânia” e "A Casa - A História da Seita de João de Deus".

"Bicha, faz três anos que eu tô parada. Hoje, eu só quero Parada." Quando Jô Allonne ("com dois éles e dois ênes") sai da estação Consolação, que na verdade fica na avenida Paulista, ela sente uma lufada de liberdade. Depois de dois anos reduzida a um evento virtual, a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo voltou a tomar a rua mais icônica da cidade.

Faz pelo menos 20 anos que Jô vai à Parada. Sempre com uma peruca se encontrando no baixo das costas com o decote de um maiô cavado, a cada ano menos cavado, e botas, a cada ano mais altas no cano e mais baixas no salto. "A idade chega, amor", ela diz, sem revelar a sua. Nem o lugar onde mora. "Bota aí que eu sou do Ipiranga, porque se eu falar o meu bairro ninguém vai nem conhecer."

Pessoas lotam a avenida Paulista durante a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo
Pessoas lotam a avenida Paulista durante a Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Jô foi uma das primeiras a chegar à Paulista, antes das onze da manhã, tamanha era sua euforia. Uma euforia de ver um dia alegre numa cidade que ela hoje considera triste. "São Paulo é uma cara sem maquiagem. Mas tem um dia no ano que essa cara se pinta. E esse dia é hoje. Já viu como tudo tá colorido? A gente é o sangue dessa cidade." Depois de dizer coisas sábias e entornar duas cervejas que trazia na bolsa, Jô some no meio da multidão que vai crescendo, mas sua mensagem fica. É só dar uma volta na região para notar como quase todos os negócios se fantasiaram para a Parada. O dinheiro cor-de-rosa existe.

O Hotel Alteza, na rua Peixoto Gomide, teve de improvisar uma placa de LOTADO, escrito em letras maiúsculas de caneta BIC. O mercadinho Saraiva, na rua Augusta, cobriu sua entrada de fios de papel metálico da cor do arco-íris para vender vinho Cantinho a R$ 5,99 e fazer uma promoção de vodca Askov, de R$ 9,99 por R$ 7,99. Coroas do Burger King nas cores do arco-íris cobrem cabeças como se fossem uma indumentária religiosa. O Hotel Íbis da rua da Consolação anuncia cervejas e drinques sobre uma bandeira multicolorida, enquanto a cantora Majur, de cima do trio-elétrico, grita "Nós não estamos à venda", lá pelas três da tarde. Até aí, tudo ok. Marcas podem acenar para grupos da população, contanto que tenham um tico de coerência que seja. Nem sempre é o caso.

No encontro da avenida Paulista com a rua Augusta, há uma Ultrafarma. Os corredores da farmácia estão decorados com bexigas coloridas e duas meninas usam a parede lateral como apoio para se amassarem, enquanto a Parada passa. Mas há algo de forçoso nas cores dessa farmácia.

Em julho de 2021, o apresentador Sikêra Júnior, do programa policialesco "Alerta Nacional", da RedeTV!, achou por bem cometer um crime em rede nacional. Sikêra chamou pessoas LGBTQIA+ de "raça desgraçada". Mais de 50 marcas se comprometeram a jamais anunciar no programa. Já Sidney Oliveira, o dono da Ultrafarma, se sentiu empreendedor ao fazer o contrário. Não só manteve o patrocínio ao programa como foi à imprensa se gabar de bancar o ódio. "As vendas aumentaram quase 30% no dia da polêmica. Foi um recorde", disse à revista IstoÉ Dinheiro. Já dá para saber o que esses balões baratos mal escondem.

As cores da diversidade são bonitas, mas não são de todos. É uma honra ter gente como o bloco de pais de crianças trans pintando o seu estandarte de cor-de-rosa e de azul-claro. Traz lágrimas aos olhos ver o grupo Eternamente Sou, com placas coloridas de mensagens como "Orgulho de Ser Uma Lésbica Idosa". É uma honra estar no arco-íris do vestido de uma drag queen que tomou o microfone de uma política, durante um discurso, e só gritou: "Nós estamos vivos, estamos vivas, estamos vives e vamos gritar a plenos pulmões!". Essas pessoas, sim, merecem usar as cores do arco-íris. Quase todo mundo tem esse direito, na real. Afinal, são muitas as cores. Mas não merece a nossa bandeira quem financia nossa morte.

Não se pinte com nossas cores em junho só porque você tem uma filial na avenida Paulista. A gente conhece bem a pele que se esconde embaixo dessa maquiagem improvisada, que você coloca por um dia só no ano.

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