Descrição de chapéu Mobilidade transporte público

Cartão de transporte some em SP, e loja empurra versão 'casada' com crédito e débito

Reportagem visitou 25 pontos de emissão do Top, mas só um tinha a versão 'pura' para ônibus e trens; responsáveis prometem apuração

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São Paulo

Pessoas que precisam do cartão Top apenas para o uso no transporte público metropolitano —ou seja, sem funções como conta digital, débito e crédito— têm encontrado dificuldades para encontrá-lo. Isso tem obrigado muitos paulistanos a fazerem uma peregrinação por São Paulo atrás dessa versão "pura", sem serviços financeiros atrelados.

A principal função do Top é servir como bilhete metropolitano dos transportes sobre trilhos e linhas de ônibus intermunicipais gerenciadas pela EMTU, empresa que gerencia o transporte urbano na Grande São Paulo. Ele passou a ser usado no fim do ano passado, em substituição ao antigo BOM.

Nas lojas Pernambucanas, principal ponto de emissão do cartão, praticamente só é oferecida a chamada opção "híbrida", com bandeira Mastercard e atrelada a serviços financeiros. A reportagem da Folha foi desde a última quinta-feira (21) a 25 das 80 unidades das Pernambucanas onde são emitidos cartões Top. E em apenas uma foi possível obter o bilhete puro. Procurados pela reportagem, os responsáveis disseram que vão investigar.

Abrão Bendinelli, 44, tentou fazer um bilhete de transporte e saiu da loja com cartão Top com funções bancárias - Zanone Fraissat/Folhapress

O governo estadual, então sob a gestão João Doria (PSDB), apoiou em 2019 a criação de uma associação que passou a ser a responsável pela bilhetagem do sistema. Essa associação contratou, sem licitação, a empresa Autopass para controlar o serviço. A empresa então escolheu as Pernambucanas como local de emissão do Top e a Mastercard como bandeira dos cartões híbridos —as companhias envolvidas afirmam que não era necessária licitação porque a relação entre elas é privada.

Além dos postos físicos, o cartão pode ser solicitado também pela internet, mas com cobrança de R$ 22,30 de frete para ser entregue em casa ou dias depois em algumas poucas unidades das Pernambucanas. Ainda pode ser pedido nas lojas com recebimento na residência. No entanto, são opções pouco práticas para quem precisa usar o cartão e não tem tempo a esperar.

O modo mais fácil de conseguir o cartão é ir até um dos postos das Pernambucanas, que em geral só têm a versão hibrída. Assim, os usuários ou aceitam essa modalidade ou correm o risco de ficar sem o Top.

Desempregado e procurando estágio em serviço social, o DJ Abrão Bendinelli, 44, foi até a Pernambucanas da avenida Dona Belmira Marin, no Grajaú (zona sul), atrás de um simples bilhete que permitiria a integração no transporte metropolitano. Saiu de lá com um cartão bancário indesejado, com a função débito.

"Se alguém me aborda na rua, toma meu cartão e habilita o crédito? Pegaria na carteira todos os meus dados e aí já era", afirma Bendinelli.

O morador da zona sul teve que recorrer ao site Reclame Aqui e, após a queixa, foi procurado por um atendente do Top que prometeu bloquear a função que abre as portas para o sistema bancário. "O cartão não mudou. Disse ele que, simplesmente, bloquearam no sistema. Vou ter que confiar na palavra", afirma. "Poderiam ter falado que tinha um cartão normal e outro com débito e crédito", diz Bendinelli.

O cartão híbrido é oferecido por padrão nas Pernambucanas —em nenhuma das lojas visitadas pela Folha os atendentes informaram inicialmente que existia a opção pura. E mesmo quando questionados sobre a modalidade, a maioria informa que não é possível emiti-lo ali.

Em geral, a resposta padrão ouvida pela reportagem é que "você só ativa se quiser" os serviços financeiros e que a versão híbrida "não tem taxa".

Entre as 25 unidades visitadas pela reportagem em todas as regiões da capital paulista e em cidades da Grande São Paulo, o posto instalado nas Pernambucanas da rua Teodoro Sampaio (em Pinehiros) foi o único a emitir o Top puro após o pedido feito aos atendentes. .

Quem está na estação Corinthians-Itaquera e precisa do cartão, por exemplo, não pode contar com o Poupatempo local, onde se emite até RG, entre outros documentos. É necessário procurar a Pernambucanas do shopping vizinho, onde, segundo as atendentes, a máquina que imprimia o puro foi até levada embora nos últimos dias. Restou só o híbrido.

Essa ausência de uma máquina para imprimir o puro foi das justificativas mais comuns ouvidas pela reportagem.

Coordenador do programa de mobilidade urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Rafael Calabria critica a a vinculação de um direito social, o transporte, à oferta de um serviço financeiro.

"É muito abusivo. Você acaba favorecendo o empresário, que vai ganhar um número gigantesco de pessoas que são obrigadas a tirar o cartão", afirma. "É extremamente lesivo ao usuário do sistema de transporte coletivo e equivocado por parte do governo estadual", completa Calabria. "É um serviço quase compulsório e um direito que deveria ser facilitado com pleno acesso", explica.

Ele também aponta para o risco de que dados dos usuários do sistema de transporte sejam compartilhados com as empresas.

Em um cenário desses, onde um cartão tem funcionalidades distintas, é fundamental entender quem são os agentes e as práticas mínimas para segmentar os diferentes tipos de dados, afirma Bruno Bioni, diretor-fundador do Data Privacy Brasil. Uma empresa financeira, por exemplo, pode ter acesso a informações de crédito do usuário como qualquer banco, mas não pode saber sobre os deslocamentos feitos com o cartão sem a autorização expressa da pessoa.

Questionado sobre os problemas envolvendo o Top, o Ministério Público estadual disse que, por enquanto, não há novidades —um inquérito foi aberto há alguns meses, após os primeiros relatos de problemas. Já o Tribunal de Contas do Estado disse que "o processo está sendo analisado pelos órgãos técnicos internos da Casa que emitirão pareceres para posterior despacho do Conselheiro-Relator".

Resposta

A Secretaria dos Transportes Metropolitanos e suas empresas vinculadas Metrô, CPTM e EMTU, sob a gestão de Rodrigo Garcia (PSDB), afirmam que notificaram a Abasp, associação responsável pelo contrato celebrado com a Autopass, para uma "rigorosa apuração" sobre o relatado na reportagem.

Já a Abasp (Associação da Bilhetagem e Arrecadação nos Serviços Públicos de Transporte Coletivo de Passageiros do Estado de São Paulo) afirma que solicitará à Autopass uma auditoria do serviço de emissão Top nas unidades mencionadas na reportagem, "reforçando a importância de sempre oferecer aos passageiros todas as modalidades disponíveis dos cartões".

A Autopass diz que o passageiro sempre pode optar pelo cartão Top só com a função transporte. "O cartão híbrido não é obrigatório. Ainda que algumas lojas não disponham de emissão do cartão transporte, o cliente pode realizar o cadastro no local e receber gratuitamente em sua residência", afirma.

Outra possibilidade, segundo a empresa, é comparecer pessoalmente à estação Belém, na linha 3-vermelha do metrô, das 6h às 22h. "Basta levar comprovante de residência e CPF ou RG", diz. A reportagem constatou que é possível obter o cartão puro no local. A companhia disse ainda que irá apurar os casos relatados pela reportagem.

Segundo a empresa, desde o início das operações foram emitidos 1,2 milhão de cartões Top, sendo 52% na versão pura.

Questionada se Pernambucanas e Mastercard têm acesso aos dados dos usuários, a Autopass afirma que isso acontece apenas na versão hibrída. Nesses casos, as informações são compartilhadas com instituições financeiras para análise do perfil de crédito da pessoa, como prevê a lei.

As Pernambucanas confirmaram que os dados são compartilhados apenas no caso da versão hibrída e disse que a coleta de informações segue a LGPD (Lei Geral Proteção de Dados). A empresa afirma ainda que a escolha do tipo de cartão fica a cargo do usuário do transporte.

A Mastercard diz que sua parceria comercial com a Autopass é privada e, portanto, não proveniente de um processo de licitação.


Como o Top substituiu o BOM

  • Governo estadual participou da criação de uma sociedade civil, a Abasp, para gerenciar a venda de bilhetes no transporte público
  • A Abasp, formada por integrantes de Metrô, CPTM e empresas de ônibus que fazem parte dos serviços administrados pela EMTU, é uma sociedade civil sem fins lucrativos criada em outubro de 2019 para unificar o sistema de bilhetagem
  • Sem licitação, a Autopass foi contratada pela Abasp para implementação e operacionalização do Top. A Abasp diz que a contratação da Autopass seguiu os termos previstos em seu regulamento, "com procedimentos e exigências similares às previstas na lei de licitações"
  • A Autopass escolheu as Lojas Pernambucanas como pontos de emissão do Top e a Mastercard como bandeira do cartão na modalidade híbrida, com funções de conta digital, débito e crédito

Como funciona o cartão

O que é É o bilhete do transporte público metropolitano de São Paulo, que substitui o BOM. Por meio do cartão é possível fazer viagens e integrações nos ônibus da EMTU e nos trens do metrô e da CPTM.
Possui duas modalidades:

  • Puro: É o cartão sem conta digital ou funções débito e crédito
  • Híbrido: É o Top com bandeira Mastercard, com conta digital, débito e crédito

Quais deveriam ser os locais de emissão

Lojas Pernambucanas São mais de 80 unidades que disponibilizam o serviço. O usuário pode retirar o cartão na hora gratuitamente ou pedir para entregar em casa. Nas 25 lojas visitadas pela Folha, apenas uma oferecia o cartão "puro", as outras tinham apenas o "híbrido"

Estação Belém (linha 3-vermelha) Todos os dias, das 6h às 22h, é emitido o cartão Top "puro", sem conta digital ou funções débito e crédito

Internet No site do cartão e no aplicativo. Para receber o "puro" em casa, é necessário pagar frete de R$ 22,30

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