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Morte de Leandro Lo mostra como uso de armas para fins privados pode virar tragédia

Conduta de policiais, mesmo fora do serviço, é diferente da exigida do restante dos cidadãos

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Alan Fernandes

Professor da FGV e do Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar/SP e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

A diminuição dos níveis de violência extrema passa, em boa medida, pela atuação dos agentes que legalmente têm o direito ao uso da força — como policiais. Estes devem se colocar em face a situações de alto risco, nas quais a violência contra si ou contra as pessoas que ele está encarregado de proteger é uma realidade bastante próxima. Por isso, eles recebem a autorização para o porte de arma de fogo, incluindo em locais de aglomeração, permissão já estabelecida nos anos 2000, com o Estatuto do Desarmamento.

Dizem as lições mais bem estabelecidas sobre o uso da força que ela deve ser proporcional à agressão, iminente ou sofrida. Não pareceu ser o cenário que se viu na madrugada de domingo (7), que culminou na morte do lutador Leandro Lo, que, desarmado, foi vítima de um disparo de arma de fogo efetuado por um oficial da Polícia Militar.

Amigos e familiares de Leandro Lo durante o enterro do lutador no cemitério do Morumby, em São Paulo
Amigos e familiares de Leandro Lo durante o enterro do lutador no cemitério do Morumby, em São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress

Nos estritos termos normativos, a se verificar a apuração dos fatos, o autor dos disparos, pelo fato de estar armado em local público, não cometera qualquer transgressão ou crime. Contudo, a despeito dos julgamentos penais, o fato é que assistimos a mais uma morte ocasionada por motivos fúteis. Grave por si, em vista da perda humana, aprofunda a importância por ter sido cometida por um agente público, encarregado legal e socialmente de evitar que, no geral, pessoas sejam assassinadas.

O desempenho de uma função pública exige uma conduta que não pode se equiparar àquela exigida aos demais cidadãos. Ser policial, por sua capacidade outorgada de fazer uso da força, requer uma atenção além do que se admite às pessoas em geral. Sim, (é preciso dizer) é um ônus que policiais devem trazer consigo, pela razão de o poder a eles conferido ser extremo e, por isso, extremamente ameaçador.

Até a edição do Estatuto do Desarmamento, policiais eram impedidos de ingressar armados em locais de espetáculo, como festas, shows e jogos de futebol. Com a permissão decorrente da lei, fica implícita a ideia de que os policiais são atentos ao interesse público, limitando-se ao uso, estrito, desse equipamento a essa finalidade. O caso, mesmo antes de quaisquer julgamentos, permite-nos pensar sobre o papel da ética da atuação policial. Ou seja, para além das questões legais, o que é exigido de um policial, ainda que fora do seu turno de serviço, armado, em um espetáculo e eventualmente provocado? Por certo, a morte de um cidadão, atingido por um tiro na cabeça, em um show, não compõe o repertório de ações disponíveis para os policiais. Não é apenas sobre procedimentos ou protocolos, mas, antes, uma questão ética.

O caso nos mostra é que o uso de armas, assim como de quaisquer bens públicos para fins privados, tem grandes possibilidades de se transformar em tragédias. Exercer uma função pública, mesmo que, nos casos de policiais, fora de suas escalas de serviço, exige uma conduta que vai além daquela que se admite para os demais cidadãos. Por mais que eventualmente venha à tona que o oficial tenha se envolvido em uma briga e que, para se defender, teria recorrido à arma que trazia consigo, a questão se coloca já antes: já que estava armado (e será que seria mesmo necessário?), e, portanto, evidentemente se colocando no papel de policial, qual o papel dele, enquanto policial?

Peter Gay, em O Cultivo do Ódio (Ed. Companhia das Letras), descreve como, na Europa vitoriana, os duelos, essencialmente violentos, foram sendo substituídos por formas de canalização da agressividade, como os jogos de futebol e lutas com regras controladas pela sociedade. Para o autor, nesse processo civilizatório (para tomar emprestado o termo de Norbert Elias), a sociedade europeia buscou formas de escoamento da agressividade individual.

A morte de Leandro Lo, provocada pela arma de fogo de um policial militar, mostra que ética, ética policial, mitigação da virilidade doentia e, afinal, nossos processos sociais e políticos civilizatórios, andam de mal a pior, tendo como mostra a enormidade de vidas que são perdidas por encontros triviais (e suas frustrações) próprios da convivência humana, como relacionamentos amorosos desfeitos, que levam ao feminicídio, ou como uma eventual briga em uma pista.

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