Há desvio de função nas políticas de moradia para quem mais precisa, diz urbanista

Para Simone Gatti, poder público perde dinheiro ao deixar de fiscalizar empreendimentos que usam o caráter social apenas para obter benefícios

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São Paulo

Para a arquiteta e urbanista Simone Gatti, professora da Escola da Cidade representante do IAB-SP no Conselho Municipal de Política Urbana, as políticas de habitação de interesse social e de mercado popular de moradia carecem de controle da demanda pelo poder público.

Gatti, que é também presidente do Fundo FICA, uma associação que viabiliza aluguel na região central de São Paulo para famílias de baixa renda, conta que a ausência de fiscalização acaba prejudicando ainda mais a situação de quem necessita de moradia na cidade.

A arquiteta Simone Gatti na janela do seu apartamento, com a vista de São Paulo ao fundo
A arquiteta e urbanista Simone Gatti, professora da Escola da Cidade - Fabio Braga - 24.abr.2013/Folhapress

"Vivemos em um momento de altíssima emergência habitacional e os nossos instrumentos para quem mais precisa estão sofrendo desvio de função", diz.

Como a Folha mostrou, a prefeitura paulistana concede benefícios para construtoras que incluem imóveis populares em seus empreendimentos, mas a falta de acompanhamento acaba permitindo que essas moradias acabem nas mãos de investidores e não de famílias.

De que maneira as construtoras se beneficiam ao inserir imóveis de HIS (Habitação de Interesse Social) e HMP (Habitação de Mercado Popular) em seus empreendimentos?

Em toda a cidade, para construir além do coeficiente de aproveitamento básico, o empreendedor precisa pagar por isso, que é o pagamento da outorga onerosa do direito de construir. Mas há um incentivo para a produção de HIS e HMP, tornando essa outorga gratuita. No perímetro da Operação Urbana Centro, é possível construir até seis vezes a área do terreno sem pagar outorga, independente do tipo de empreendimento.

O problema é que o poder público não controla essa demanda, ou seja, não tem mecanismos para controlar as faixas de renda que acessam esse empreendimento, e portanto os fundos de investimento acabam tendo acesso a elas. O que é desvio de finalidade, pois são unidades que deveriam ser destinadas para as rendas mais baixas que não conseguem acessar o mercado imobiliário para as rendas médias.

Conceder benefícios às construtoras é uma forma correta de estimular a criação de imóveis para pessoas de baixa renda?

Teria sentido se a demanda fosse controlada, mas não é. A única coisa que tem é uma declaração do empreendedor de que vai atender a faixa de renda, sem exigir nenhum documento comprobatório.

A única demanda que passa por algum controle é quando o empreendimento é produzido pelo poder público. Porém, essa produção é muito baixa, considerando o baixo investimento em habitação social dos últimos anos.

Existe alguma possibilidade legal para que imóveis de habitação social ou mercado popular sejam comprados por pessoas que fogem às faixas de renda previstas?

Não há nenhum amparo legal, mas como não existe mecanismo de controle, esse desvio de finalidade acaba sendo institucionalizado.

Quais são as consequências da falta de fiscalização?

As famílias de menor renda continuam sem acesso aos imóveis produzidos pelo mercado imobiliário.

Segundo pesquisa que desenvolvi no meu pós-doutorado na USP, entre os anos de 2014 e 2019, foram produzidos 489 empreendimentos de HIS 2 (para famílias de três a seis salários mínimos) pelo mercado imobiliário privado, sem pagar outorga e sem controle de demanda. Nesse mesmo período, somente 23 empreendimentos privados e 43 públicos foram construídos para HIS 1 (até três salários mínimos).

E qual o impacto para a cidade?

É a falta de habitação para quem mais precisa, pois o dinheiro da outorga onerosa (que está sendo gratuita) seria em parte para construir HIS 1 pelo poder público. Vivemos em um momento de altíssima emergência habitacional e os nossos instrumentos para a produção de habitação para quem mais precisa estão sofrendo desvio de função. E há cada vez mais famílias ocupando irregularmente áreas de riscos e insalubres nas periferias, ampliando o espraiamento urbano, pela ineficácia das políticas habitacionais.

Qual seria a solução para evitar que habitação de interesse social e mercado popular, depois de tantos incentivos, caia na vala comum dos interesses da especulação imobiliária?

Precisamos de duas coisas. Primeiro, controlar quem compra essas habitações que recebem subsídios públicos. Isso pode ser feito gravando-se a faixa de renda à qual foi destinada a unidade na matrícula do imóvel e exigindo o controle das prefeituras de toda comercialização desses imóveis. Precisa ser criada uma gerência institucional para realizar essa tarefa, como na Espanha, que propôs a lei VPO (Vivienda de Proteción Oficial), não apenas para a primeira compra mas também para revendas e aluguéis. Qualquer comercialização desses imóveis deve manter seu caráter social e seguir uma tabela de preços preestabelecida pelo poder público.

Uma segunda forma é ampliar a produção de habitação pública, que permanece sob propriedade dos governos e é alugada a preços acessíveis para a população de baixa renda, aos moldes do programa Locação Social de São Paulo.

Por qual motivo o Ministério Público não tem atuado em relação a isso? Seria a Promotoria um dos órgãos fiscalizadores?

Não sei, mas acredito que a Promotoria de Habitação e Urbanismo deveria exigir essa regulação.

Como a revisão do Plano Diretor poderia corrigir essas distorções?

Exigindo a gravação da renda nas matrículas dos imóveis e a criação de um sistema de controle, bem como revendo a gratuidade da outorga onerosa para HIS 2.

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