Prefeitura dá benefício a construtoras, mas não fiscaliza destino de moradia social

Corretores aconselham comprador a usar 'laranjas' com renda familiar menor para financiar os imóveis com juros baixos em SP

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São Paulo

A Prefeitura de São Paulo concede benefícios para construtoras que incluem imóveis populares em seus empreendimentos, como a possibilidade de construir várias vezes acima do permitido por lei sem o pagamento de taxa extra, além de isenção de impostos.

Não há, porém, fiscalização sobre a destinação desses apartamentos, que podem acabar nas mãos de investidores, alimentando o mercado sem nunca terem passado por famílias de baixa renda, para os quais foram inicialmente destinados.

Vista da região central de São Paulo, a partir do viaduto Jaceguai, na Bela Vista - Eduardo Knapp -18.jan.2022/Folhapress

Em setembro, a Folha mostrou que um prédio com financiamento do extinto Minha Casa Minha Vida, sobre o terreno de uma antiga favela da Vila Madalena, de onde foram removidas mais de cem famílias no início dos anos 2000, virou em parte "hotel" com diária de R$ 800.

A prefeitura diz que quem compra o apartamento se responsabiliza pela destinação adequada. O Secovi (Sindicato da Habitação) diz que não tem ingerência na forma como o adquirente utiliza sua unidade. Já o Ministério do Desenvolvimento, que respondeu também pela Caixa Econômica Federal, disse não ter conhecimento de que a prática se dê também em relação ao novo programa Casa Verde e Amarela, do governo federal.

A situação acende um alerta uma vez que o déficit habitacional da capital é de 369 mil domicílios e mais de 31 mil pessoas vivem nas ruas da cidade.

Os imóveis HIS (Habitação de Interesse Social) e HMP (Habitação de Mercado Popular) foram concebidos para a população de baixa renda. Especialmente os primeiros, que na categoria 1 poderiam se adquiridos por pessoas com renda familiar mensal máxima de R$ 3.636 (quase três salários mínimos).

Uma série de artimanhas, porém, sugere que os incentivos concedidos pela administração pública, representados também por financiamento com juros baixos pela Caixa, se percam no meio do caminho.

Após conversas com ao menos dez corretores, visitas a estandes e obras e acesso a trocas de mensagens entre quem vende e investidores, a reportagem constatou que profissionais aconselham o comprador a usar "laranjas" com renda familiar menor que a exigida para financiar os imóveis com juros baixos pelo Casa Verde e Amarela.

Nos estandes, a conversa é aberta e franca, sem qualquer tipo de enrolação. Na zona oeste, um corretor explicou que a transação à vista eliminaria qualquer empecilho à compra por quem quer que seja, porque ninguém fiscaliza posteriormente com quem ficou com o apartamento.

A reportagem teve acesso também a uma troca de mensagens entre um corretor e um comprador em que é apresentado outro "pulo do gato". É uma carta de ciência que o investidor pede que o comprador assine a fim de declarar saber que o imóvel é para pessoas físicas que tenham determinada renda familiar mensal, comprometendo-se a alugá-lo, por exemplo, para quem se enquadra nessa faixa.

Por esse documento, o comprador assumiria a responsabilidade sobre destinação, isentando o vendedor.

A professora Isadora Guerreiro, da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo), afirma que o poder público abriu mão do controle de demanda por moradia popular, com consequências negativas. "O que a gente está construindo é uma política privada de habitação, que gera uma série de desequilíbrios e perversidades."

Presidente da Comissão de Direito Urbanístico da OAB e professora do Mackenzie, Lilian Pires sugere método de fiscalização a partir da revisão do Plano Diretor. "Acho que seria pertinente que o Plano Diretor determine prazo para a implementação de controle de comercialização das habitações sociais subsidiadas, gravando a renda de destinação originária na matrícula do imóvel e criando sistema de controle informatizado para as futuras revendas ou locação dos imóveis de interesse social", afirma.

Segundo Pires, em geral o financiador atende à regra legal na primeira venda, quando a compra é parcelada. "O problema é que depois acontecem [outras] vendas, aquilo que a gente chama de contrato de gaveta. Por isso, talvez, uma das discussões que precisaríamos fazer seria gravar na matrícula do imóvel que é utilizado para HIS. Ainda assim, teria o problema da [falta de] fiscalização", diz.

A arquiteta e urbanista Simone Gatti, professora da Escola da Cidade, sugere uma gerência institucional para realizar essa tarefa. "Qualquer comercialização desses imóveis deve manter seu caráter social e seguir uma tabela de preços preestabelecida pelo poder público", explica a também representante do IAB-SP no Conselho Municipal de Política Urbana.

Proprietário se responsabiliza por destinação correta, diz prefeitura

Questionada duas vezes a respeito de quem fiscaliza a destinação dos imóveis sobre os quais abre mão em parte da arrecadação de recursos, a gestão Ricardo Nunes (MDB) respondeu por meio da Secretaria de Urbanismo e Licenciamento.

A pasta disse que, conforme previsto no Decreto nº 59.855, o proprietário ou possuidor do empreendimento apresenta declaração se responsabilizando expressamente pela correta destinação das unidades de habitação de interesse social e de mercado popular construídas às famílias que se enquadrem nas faixas de renda previstas na legislação.

Questionada sobre quanto deixou de arrecadar com outorga onerosa e impostos nos últimos 12 meses para a construção de HIS e HMP, a prefeitura disse que não é possível a "obtenção do valor mediante cálculo geral".

A prefeitura diz que está em curso a revisão do Plano Diretor, que aborda, entre outras coisas, a habitação.

O Secovi-SP (Sindicato da Habitação), entidade que representa empresas do setor imobiliário, afirmou que "prover habitação pode ser a título de propriedade ou de locação". "Quer na alienação, ou na locação, o fim social desta tipologia de unidade está preservado", disse.

Segundo o Secovi, os incorporadores produzem habitações, independentemente de quem sejam os adquirentes, devendo sempre ser respeitada a destinação prevista em lei. Afirma ainda que o setor não tem ingerência na forma como o adquirente utiliza sua unidade. "Os empreendedores noticiam nos documentos do empreendimento a destinação determinada pela lei."

O sindicato que representa as empresas do ramo imobiliário diz também que "entende e defende o cumprimento da lei e seu controle pelas autoridades constituídas".

A Caixa disse que se manifestaria por meio do Ministério do Desenvolvimento Regional, sob a gestão do governo federal, que, por sua vez, afirma que só pode responder pelos empreendimentos contratados pelo programa Casa Verde e Amarela (o sucessor do Minha Casa Minha Vida).

"Em todo caso, o MDR informa que não tem conhecimento que as situações relatadas estejam ocorrendo em imóveis do PCVA", disse, em nota.

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