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Mobilidade transição de governo

O que esperar do Ministério das Cidades

Investimentos em habitação e infraestrutura urbana estão longe de garantir a superação dos problemas

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Raquel Rolnik

Urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

Entre os enormes desafios que o novo governo liderado por Lula deve enfrentar, talvez um dos mais complexos seja a crise urbana. Não precisa ser especialista para saber que nossas cidades —em suas várias escalas e regiões— sofrem com problemas de mobilidade e transportes, moradia, drenagem, lixo, abastecimento de água e coleta de esgoto, só para citar alguns evidentes e graves.

Não há dúvida de que um Ministério das Cidades é mais do que bem-vindo, no mínimo para reconhecer no âmbito do governo nacional esta agenda e estabelecer um lugar a partir do qual as políticas neste âmbito podem e devem ser tratadas.

O problema é que para superar a (in)sustentabilidade das cidades brasileiras não existe bala de prata. E, embora disponibilizar recursos para investimentos em habitação e infraestrutura urbana seja muito necessário —o que pelo menos desde a criação do BNH (Banco Nacional da Habitação) tem sido a tônica da participação do governo federal nesta área—, isto está longe de garantir a superação dos problemas.

Apresento aqui brevemente algumas razões para essa afirmação.

Prédios idênticos pintados de diferentes cores vistos de cima
Conjuntos habitacionais na Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo - Lalo de Almeida - 10.nov.2022/Folhapress

As cidades são administradas por governos municipais, mas também, em muitas situações, por governos estaduais. Mas ao contrário da Saúde ou da Educação, que no Brasil montaram sistemas federativos, organizando o papel dos governos municipal/estadual/federal e garantindo fontes estáveis e permanentes de recursos que guardam alguma proporcionalidade com as necessidades de cada lugar, nos temas urbanos a distribuição de recursos depende da capacidade de acesso a crédito ou de negociações no âmbito do jogo político eleitoral: as famosas emendas parlamentares.

O modelo histórico de institucionalidade federal —com raríssimas e heroicas tentativas de ruptura— tem sido o de assegurar uma fonte de financiamento para obras (o FGTS), controlada por um banco (a Caixa, herdeira do BNH), e administrar e eventualmente intermediar as emendas.

O resultado tem sido não apenas errático —nunca se sabe quando e com quanto as cidades poderão contar para urbanizar seu território—, mas também perverso na medida em que não necessariamente o que chega é o que é mais necessário e urgente.

Por trás desse modelo, também está uma lógica que privilegia a "obra", ou seja, a construção de casas a grandes infraestruturas, capazes de serem anunciadas, inauguradas e contabilizadas, e a gestão cotidiana dos sistemas implementados nunca entram na equação.

O exemplo da crise que vivemos hoje nos sistemas de ônibus é eloquente do que acabamos de afirmar: sem dúvida precisamos de mais investimentos em metrôs, trens e corredores de ônibus nas cidades.

Mas o modelo presente nas concessões dos sistemas de transporte —tarifas pagam a gestão do sistema, que, aliás, está por trás de toda a concepção das propostas de privatização dos serviços de água e esgoto— simplesmente entrou em colapso no caso das concessionárias de ônibus.

Sem subsídios, serviços públicos de qualidade não são acessíveis. Só existem então duas alternativas: ou só acessa o serviço de excelência quem pode pagar, ou, para as maiorias, o serviço será de péssima qualidade ou inexistente.

Finalmente, levanto aqui outro tema, na área da habitação. As mais de 200 mil pessoas que estão hoje morando nas ruas, e as que a essas se agregarão em função de despejos, enchentes e desmoronamentos —além das milhares que vivem em condições muito precárias— não podem nem esperar a construção de casas, muito menos pagá-las via financiamento, mesmo subsidiado.

A política habitacional, em diálogo com a indústria da construção civil e com o sistema financeiro, insiste no esforço da ampliação do crédito para a compra da casa própria, mas quem mais precisa não será atendido por essa produção, ou, quando o for, como já vimos na história da construção de casas populares, terá que se contentar com "plantations" de casas sem cidade.

Nesse contexto, em que serão necessários movimentos inovadores e corajosos na política urbana, o pior cenário será um Ministério das Cidades administrador de emendas, comandado pelo centrão (é essa sua especialidade), e uma política urbana formulada a partir da velha lógica do financiamento/crédito para obras operada por um banco, a Caixa.

Temos institucionalidades —como a lei que criou o Sistema Nacional de Habitação, em 2005—, experiência e massa crítica para ir muito além. E a hora é agora.

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