Faca sob colchão e medo de não acordar: os desafios das mulheres que moram na rua

Marginalizadas, moradoras de rua em São Paulo falam dos medos e de como fazem para comer ou se limpar

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Diana Maria de Assunção, 52, que mora sozinha na zona sul de SP Marlene Bergamo/Folhapress

São Paulo

Dormir com um facão sob o colchão ou agradecer por acordar viva todos os dias –sem ter sido queimada junto com seu barraco– são cenas que fazem parte do cotidiano de mulheres que moram nas ruas da cidade de São Paulo.

Os depoimentos foram ouvidos pela Folha ao percorrer diferentes regiões da capital nesta segunda-feira (6). De acordo com o último censo, apenas 16,6% dos moradores de rua de São Paulo são mulheres.

Os relatos colhidos mostram que falta de dinheiro para pagar aluguel, brigas e frustrações no círculo familiar são os motivos que imperam e empurram essas pessoas para a marginalidade.

As críticas aos albergues, por sua vez, são unânimes: "sujos". Daí a preferência por se manterem sob tetos que assam no sol ou que pingam água com os temporais de verão.

Moradora de rua está sentada em frente à sua barraca
Jucilene Gomes, 38, que mora na zona oeste e reclama da dificuldade para tomar banho - Marlene Bergamo/Folhapress

Estou na rua há quatro anos. Ou mais.

Já morei em albergue, mas vou falar, é muita regra... tem horário para dormir, horário para acordar, e eu gosto de dormir bem. E os banheiros? Todos entupidos. Tudo sujo, até a boca.

Saí de casa porque estava desempregada, morava com minha mãe e toda hora ela jogava na minha cara. Tenho uma filha de 21 anos que mora em Carapicuíba com o "namorido". Meu marido eu conheci na rua.

O mais difícil de estar aqui é banho. Não temos banheiro. Eu tenho um balde em que faço xixi, dentro da barraca, depois jogo água e pronto. Descarrego dentro do bueiro. A água pegamos no posto, eles não implicam.

Absorvente a gente ganha bastante. Mas o rapa [fiscalização feita pela prefeitura] levou a prótese [dentária] que eu fiz, fiquei sem.

Eu nunca passei nenhuma agressão [física ou sexual] porque meu marido cuida de mim. Mas tem uns homens abusados, sim. Aí eu já ando com uma peixeira desse tamanho. Durmo com ela embaixo do meu travesseiro, e se vier mexer... Eu fico sempre bem atenta.

Jucilene Gomes Lourenço, 38, moradora da avenida Dr. Gastão Vidigal, na zona oeste

Retrato de Rawany dos Santos, uma mulher negra, trans, de dreads loiros
Rawany dos Santos, 41, mulher trans que mora na rua: 'meu cachorro, o Neguinho, é meu melhor amigo' - Marlene Bergamo/Folhapress

Tenho 41 anos e moro na rua há dez. Sou de São Vicente, mas criada em São Paulo.

Moro com meu marido. A gente cozinha, toma banho e faz nossa rotina normal por aqui. Mas há diversas dificuldades de viver na rua, principalmente quando o rapa chega e leva as coisas da gente.

Eu saí de casa com 14 anos porque conheci um homem e fui morar com ele. Desde então estou aqui. Até vir para a rua tiveram diversas situações; eu trabalhava e comecei a usar droga –maconha, depois farinha [cocaína]. E por infelicidade conheci o crack, aí me isolei.

Eu mexo com adereços, decoração, trabalhava com escola de samba. Teve uma parcela [de culpa] da droga, sim, mas querendo ou não foi uma escolha minha.

Minha família nunca teve nenhum preconceito, eles são totalmente mente aberta. Mas ser uma mulher trans na rua tem desafios, porque querendo ou não a população ainda é meio quadrada.

O maior desafio é pedir a Deus todos os dias para acordar viva. Afinal, eu durmo todo dia na rua, e querendo ou não sou exposta à maldade de todos.

Rawany dos Santos, 41, moradora da avenida Inajar de Souza, zona norte

O maior desafio é pedir a Deus todos os dias para acordar viva

Rawany dos Santos

moradora de rua

Eu morava em uma casa alugada em Cidade Tiradentes, mas eu e meu marido fomos dispensados do serviço e acabamos despejados. Trabalhava com limpeza e pagava R$ 350 de aluguel.

Na nossa casa tinha panela, fogão, tudo. A gente saiu e conseguiu pegar pouca coisa, o resto ficou lá. É a primeira vez que viemos morar na rua.

Para a Bia [filha de 3 anos] estamos tentando vaga na creche, mas ainda não saiu. Para comer a gente pede; meu marido trabalha no farol e vamos conseguindo. Fralda é o mais difícil de ganhar, mas coisa para comer chega, principalmente de noite. De dia chega menos.

Não fomos para o abrigo da prefeitura porque não queremos, é muita porquice. Gente maldosa. Aqui a gente faz a nossa higiene, fica de boa.

Nosso maior desejo é arrumar um serviço, ter nossa casa de novo e ter uma vida estável para deixar para a Bia. Nosso medo é que alguém faça alguma maldade com a gente aqui na rua. Coloque fogo no barraco.

Nayana da Cruz, 22, moradora do Paraíso, na zona sul

Diana Maria de Assunção, 52, decora sua 'casa' na rua com bonecas e plantas
Diana Maria de Assunção, 52, decora sua 'casa' na rua com bonecas e plantas - Marlene Bergamo/Folhapress

Estou há três anos nesse ponto. Eu morava na praça ali em cima, limpava tudo, mas não dava! Gosto das minhas coisas arrumadas e o pessoal é bagunçado, então vim para cá.

Os caras aqui me respeitam. Eles só não respeitam quem dá ousadia, mas eu não dou. Eu já até me casei com um advogado, mas não gosto de ser mandada por ninguém. Meu mal é esse! Gosto de ficar sozinha, eu e meus animais.

Medo? Medo a gente tem, mas eu não faço nada para ninguém, não mexo com ninguém, sou sozinha. Fico o mais feia possível [risos].

Para tomar banho eu tomo de balde, com roupa, mesmo. Mas ali na favela tem um banheiro e eles cobram dez conto. Hoje eu não menstruo mais, graças a Deus, mas eu sempre dava um jeito de me limpar. Só não tem jeito, filha, para a morte.

O maior desafio da rua é aguentar as pessoas que não têm a mesma cabeça. Tem gente que rouba, que não respeita os outros, é isso que eu não gosto. Já rasgaram minha barraca, já tiraram coisa de dentro… roubo é normal.

Albergue da prefeitura? Deus me livre! Aquele monte de gente, sujeira, barulho. Já fui, mas prefiro o meu cantinho. O lugar para morar quem faz é a gente.

Diana Maria de Assunção, 52, moradora da rua Brasópolis, na zona sul

O lugar para morar quem faz é a gente

Diana Maria de Assunção

moradora de rua

Selma Cristina Saraiva, 51, que vende tapete e panos de crochê na zona sul de SP
Selma Cristina Saraiva, 51, que vende tapete e panos de crochê na zona sul de SP - Marlene Bergamo/Folhapress

Eu vim parar na rua por causa da situação. Trabalhei de doméstica, cabeleireira, manicure e agora trabalho com crochê. Antes eu morava numa casa, mas faltou condições para pagar aluguel, não tá barato. A gente até tem ajuda do governo, mas com R$ 600 não se paga aluguel.

Nesse ponto eu moro há seis anos. Meu grande medo são os carros que passam, de acontecer algum acidente, porque os outros [moradores de rua] que ficam aqui perto são todos meus parentes. Aqui ninguém bebe e ninguém usa droga, a não ser meu cigarro.

Eu cozinho, tenho meu fogão, faço minha comida e também recebo doação. Ontem choveu e eu não estava aqui; quando voltei estava uma bagunça. Aí precisei limpar coisa por coisa.

O maior desafio da rua para mim, hoje, é a água. Eu trabalho com crochê, são coisas delicadas. Se um cliente vem aqui ver e eu derrubo meu crochê já suja tudo, e aí como faz? Tem que limpar e a gente não tem água, tem que buscar.

Os homens daqui ajudam também. Precisa, porque a gente não tem água, eles têm que buscar. Sou do tempo antigo, do tempo em que homem que lava a louça não vira viado.

Selma Cristina Saraiva, 51, moradora da avenida dos Bandeirantes, zona sul

A Prefeitura de SP afirma que os serviços de limpeza dos albergues são realizados diariamente sob a gestão de Organizações da Sociedade Civil (OSC) contratadas pelos equipamentos.

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