Descrição de chapéu machismo

O que é a 'machosfera', com movimentos que evitam até sexo por acreditar na opressão feminina

Denúncia contra coach de masculinidade jogou luz em homens que dizem ser vítimas de sistema que privilegia as mulheres

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São Paulo

É claro que vivemos num mundo sexista. E são os homens as vítimas de um sistema programado para mantê-los como gado das mulheres.

Assim crê a chamada machosfera, povoada por sujeitos para quem o mundo os deixou à mercê de um estrutural privilégio feminino.

Mas não esmoreça, homem: o movimento red pill (pílula vermelha) está aqui para ajudá-lo. A expressão vem de "Matrix", filme de 1999 em que Neo, o protagonista, descobre que a vida como ela é, na verdade, nunca foi: trata-se apenas de uma simulação fabricada por robôs que usam humanos como escravos.

Thiago Schutz e Lívia La Gatto
Thiago Schutz e Livia La Gatto; atriz disse estar com medo após receber ameaças na rede social - Reprodução/Montagem

O líder dos rebeldes dá a Neo duas opções, numa referência ao livro "Alice no País das Maravilhas": tomar a pílula azul, aí "você acorda em sua cama e acredita no que quiser", ou a vermelha: "Você fica no País das Maravilhas, e eu mostro até onde vai a toca do coelho".

O buraco é mais embaixo quando entramos nesse solo fértil para a misoginia que transborda das redes sociais. A tônica toda vem da ideia de que os homens precisam de uma dose de semancol, a tal red pill, para ganhar consciência de sua submissão perante o mulherio.

Eis distorções que circulam livremente nas bordas mais selvagens da internet e que beliscaram o mainstream após a atriz Livia La Gatto denunciar Thiago Schutz, um "coach de masculinidade". A humorista compartilhou um print em que o influencer lhe dá 24 horas para remover um conteúdo que ela postou zombando dele. Ele usou seu canal no Instagram, o Manual Red Pill Brasil, para fazer a ameaça de morte: "Depois disso, processo ou bala".

Schutz não queria ser associado ao vídeo em que La Gatto satiriza causas pop entre os "red pillers". Não cita nomes, mas menciona Campari. O coach havia viralizado dias antes por um vídeo em que conta, injuriado, sobre o dia em que estava "tomando meu Campari, e mina tomando uma breja". Teoriza que tudo não passava de um teste para ver se ele abriria mão da bebida avermelhada e a acompanharia na cerveja.

É um pensamento recorrente em grupos que se espremem sob o guarda-chuva do masculinismo: a sociedade, hoje, dobra-se à demanda feminista. A reclamação geral é a de que haveria um excesso de leis que priorizam mulheres, como no divórcio e na guarda dos filhos.

Também se fala em "direitos reprodutivos dos homens". Essa ala prega que, em países onde o aborto é legalizado, o homem tenha o direito de renunciar juridicamente à paternidade dentro do prazo dado para a mulher decidir se quer ser mãe. Ou seja, ficar de fora da certidão de nascimento e não pagar pensão.

David Benatar, professor de filosofia da sulafricana Universidade da Cidade do Cabo, discorreu sobre "a sistemática discriminação contra homens" no livro "The Second Sexism" (o segundo sexismo), de 2012.

Ele reconhece que o sexismo contra mulheres é mais severo. Isso não quer dizer que a outra metade da população não sofra com atos discriminatórios, diz. Vide o serviço militar obrigatório, que em geral poupa a fatia feminina.

Mais: o homem pode ser vítima de violência doméstica e sexual, mas a sociedade não costuma levar esse fenômeno a sério.

O ativista Aldir Gracindo, que patenteou o termo "movimentos pelos direitos dos homens" no Brasil, disse ao jornal em 2015 que, "se uma menina disser que o tio na escola a bolinou, é um justo escarcéu, e quando é o menino que fala da professora que o seduziu, ganha tapinha nas costas".

Retoma em 2023 a conversa sobre o tema. Ainda vê uma zona de perigo no Judiciário, que nem sempre concede a presunção de inocência ao homem. Tampouco a imprensa o faz, afirma, incluindo no pacote a Folha, que chama de "Foice de S.Paulo".

Gracindo rechaça falar em "movimento masculinista", termo empregado por muitos homens que se reconhecem nele. "Esse é um rótulo que feministas consultadas pela Folha procuram colocar em qualquer um que pareça defender direitos humanos dos homens. Existe misoginia e isso é errado, só que existe muito mais misandria, e realmente é institucionalizada."

Há todo um degradê nessa concepção central de que o homem precisa recuperar o espaço perdido para a mulher, diz Miguel Moreira, criador do canal no YouTube Atitude Alfa.

Há bolhas que promovem o separatismo masculino, um "manxit", em nome de uma alardeada autopreservação. Daí a defesa de que homens não casem nem namorem para não se subordinarem à opressão feminina.

Essa visão de mundo pulula na página de Facebook do MGTOW Brasil.

MGTOW é um grupo forte na machosfera. Significa, em inglês, "Men Going Their Own Way" —homens indo pelo próprio caminho. La Gatto, a comediante que enfureceu o coach "red piller", fez piada com as palavras: Men Going Their Own Whey Protein, ou ainda "homens indo pelo próprio caminho rumo à casa da mamãe".

Dentro do grupo, uma postagem aconselha ficar em casa no Carnaval para não ser injustamente pego por campanhas de combate a assédio. "De preferência, não transem. Não deem chance ao erro. Não queiram virar notícia. Enquanto apenas as mulheres forem vistas como vítimas, enquanto a sociedade se negar a ver o assédio que vocês também sofrem e que elas podem cometer tais abusos, escolham se cuidar"

Há ainda mensagens em tom de autoajuda: "Seja forte, guerreiro! Você em primeiro lugar. #AtéQuando".

Há diversas subcorrentes na machosfera, diz Moreira, do Atitude Alfa. Como os adeptos do MGTOW que praticam o celibato como atitude radical para não cair nas garras de um sistema jurídico feminista que, segundo eles, pune desproporcionalmente os homens. Outros só transam com prostitutas.

Para o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP, tudo parte dessa geração de "homens perdidos, que estariam interpretando que o novo feminismo demanda deles culpa e subserviência".

As próprias irmãs Lana and Lilly Wachowski, responsáveis pelo filme que inspirou a tese da pílula vermelha, descartam a abordagem masculinista. Elas se assumiram mulheres trans anos após lançarem "Matrix".

Influencer que tentou intimidar a humorista que debochou dele, Thiago Schutz no fim gravou um vídeo para alegar que foi mal compreendido. Não quis dizer que meteria bala no sentido literal, afirmou. Apenas se sentiu "atacado há várias semanas sem motivo nenhum" e empregou mal as palavras. "Eu sou humano assim como você."

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