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Homens sigma, tendência no TikTok, espalham misoginia na rede

Alcunha foi criada por blogueiro da extrema direita; vídeos somam 44 bilhões de visualizações ao redor do mundo

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São Paulo

Uma tendência vem crescendo no TikTok e espalhando vídeos misóginos na rede: homens que se identificam como sigma. Em contraponto ao estereótipo do macho alfa, os sigmas se apresentam como líderes natos, mas introspectivos, reservados, supostamente adorados por mulheres, ao passo que afirmam se comportar como lobos solitários.

No aplicativo, vídeos com a hashtag #Sigma têm mais de 44 bilhões de visualizações ao redor do mundo. As variações em inglês como #SigmaMale (homem sigma) e #SigmaRule (regra sigma) têm 4,7 bilhões e 2,7 bilhões de visualizações, respectivamente. Em português, a #HomemSigma tem mais de 34 milhões de visualizações.

No campo simbólico, as publicações são acompanhadas por emojis de copo de vinho e das estátua moai da Ilha de Páscoa. A bebida faz referência à ideia de aproveitar os prazeres da vida sozinho, enquanto a estátua representa o guerreiro, o poder e a masculinidade.

Os vídeos também apresentam as regras para ser um sigma: focar em si mesmo, respeitar seus pais, não correr atrás de mulheres e investir apenas nos "peixes raros" —como chamam as mulheres nas quais veem valor, diferentes da maioria, que para eles não valem nada.

A maioria dos vídeos traz trechos de filmes com exemplos de personagens fictícios que, para os adeptos, representam homens sigma. O principal é Patrick Bateman, empresário interpretado por Christian Bale em "Psicopata Americano" (2000) que leva vida dupla como assassino nas madrugadas de Nova York.

Psicopata Americano (2000): Christian Bale pegou pesado na academia para secar a barriga e ganhar músculos
O ator Christian Bale no filme "Psicopata Americano" (2000) - Divulgação

Mas Tommy Shelby, da série "Peaky Blinders" (2013), e K, de "Blade Runner 2049" (2017), também entram na lista.

O conteúdo traz homens demonstrando força ou agindo com violência contra outros homens. Mas também exalta situações de humilhações e brutalidade contra mulheres.

Alguns vídeos, por exemplo, mostram garotos adolescentes fingindo que vão beijar garotas e, em seguida, se esquivando delas. Em outro, com mais de 275 mil likes no TikTok, um menino dá um soco em uma menina após ela fazer uma brincadeira numa reunião entre amigos.

Entre os brasileiros que se declaram homens sigmas, há grande incentivo ao desenvolvimento pessoal, que envolve isolamento, abdicação de prazeres, acumulação de riqueza, ostentação de bens como carros luxuosos e a construção de uma estética corporal musculosa.

Muitos vendem cursos, livros e até objetos para sigmas. No Instagram, o perfil Filosofia Sigma (@filosofia.sigma), com mais de 40 mil seguidores, vende cursos com métodos para "despertar a frieza em você" e para "fazer as mulheres te desejarem cada vez mais".

Seus vídeos trazem frases de impacto e expressam o que chama de "pensamento sigma". Por exemplo: "Quando eu vejo uma garota bonita na rua, eu penso duas coisas. Uma parte de mim quer sair com ela, conversar, ser muito gentil e tratá-la com carinho. A outra parte pensa como seria a cabeça dela decepada."

Já os vídeos nas redes de Rafael Aires, que tem mais de 960 mil seguidores no Instagram e 2,6 milhões no TikTok, incentivam outros homens a procurarem uma "mulher de valor". Ele se autodenomina antiotário e critica, com frequente ironia, mulheres que traem seus companheiros, que dizem buscar relacionamentos por dinheiro, que têm muitos filhos e buscam um novo companheiro, que não aceitam rachar a conta ou que se relacionam com homens presos.

Por R$ 47,90 Aires também vende um livro, que, segundo seu site, tem lições com "o mínimo que você precisa saber não ser feito de otário". A propaganda diz ainda que a obra é direcionada para quem "saiu com a mina, só pagou lanche e perdeu tempo", "ficou conversando pelas redes sociais e não rolou nada", "cogitou mudar seu jeito de ser para agradar uma mulher" e "foi bonzinho demais e acabou se ferrando".

"Eu sempre achei essa coisa de alfa e beta a maior bobeira", diz Emanuel Goodman, 22, estudante de direito e pianista de Goiânia. Assim como uma série de outros perfis pequenos no Instagram, ele se identifica como sigma e divulga memes sobre o assunto. Na plataforma, seu arroba é @homem_máquina_sigma, inspirado no protagonista ciborgue de "O Exterminador do Futuro" (1984).

"Aí eu vi num canal no YouTube que existia esse negócio de homem sigma, que seria um cara que não se enquadra em nenhuma hierarquia social, não nasceu para dominar ou ser dominado, ela faz o que quer, como quer", explica Goodman. "Para mim, ser sigma é viver a sua vida sem se preocupar com que os outros vão pensar"

Ele diz não concordar com violência contra mulheres ou outros homens, e não vê sentido em cursos que ensinam como se comportar como um sigma. Mas relata ao #Hashtag que se sente representado por alguns personagens de filmes caros à trend.

"Eu sempre fui uma pessoa fechada, sempre esperei as pessoas virem falar comigo. O personagem de Ryan Gosling, no filme 'Drive', é um protagonista totalmente tímido, que não consegue falar muito com as mulheres, mas no fundo ele tem um coração bom", afirma. "Aí você vê que ter algo em você que as pessoas consideram cômico ou ruim, talvez não seja."

A alcunha "sigma" foi criada por Theodore Beale, escritor de ficção científica e ativista da alt-right americana descrito pelo The Guardian como "abertamente misógino e racista". Beale é conhecido pelo pseudônimo Vox Day e publicou em 2011 em seu blog texto no qual discorda da classificação dos homens apenas entre alfas, betas e ômega. Ele defende que o homem sigma estaria acima dos alfas nessa cadeia hierárquica masculina imaginária, já que se recusa a seguir as regras desse sistema de classificação.

Bale faz parte do ecossistema virtual conhecido como manosfera (ou machosfera), que se expandiu a partir dos anos 2010 e perpetua discussões sobre "os direitos dos homens", em oposição às ideias feministas. Pertencem à rede grupos como os incels (celibatários involuntários) e os PUAs (ou pick-up artists, homens que ensinam técnicas de sedução).

Ligados à extrema direita e a chamada direita alternativa, seguem a filosofia da "red pill", referência a uma cena do filme "Matrix" (1999), em que a pílula vermelha oferecida ao personagem Neo o desperta para os duros fatos do mundo real. Para os sigma, homens seriam vítimas da sociedade e as feministas obscureceriam a realidade.

A referência à pílula vermelha, ou à ideia de "lutar contra a Matrix", metáfora para a sociedade ocidental, já esteve em publicações de famosos. Em 2020, Elon Musk postou um tuíte incentivando seus seguidores a "tomar a pílula vermelha". Em resposta, Ivanka Trump, filha do ex-presidente americano Donald Trump, escreveu: "Tomada!"

Essa "luta contra a Matrix" é o mote de Andrew Tate, ex-lutador de kick-boxing britânico-americano, influenciador de destaque da manosfera. Tate é conhecido por falas misóginas, como a de que mulheres seriam propriedade de seus maridos ou que vítimas de estupro deveriam "assumir sua responsabilidade" pela agressão.

Após provocar Greta Thunberg no Twitter e receber um resposta irônica da ativista na rede, Andrew e seu irmão, Tristan, foram presos sob acusações de estupro e tráfico humano. Embora Andrew tenha sido banido das redes (e posteriormente recuperado seu acesso ao Twitter), recortes de vídeos com as suas declarações circulam pelas plataformas, compartilhadas por perfis anônimos. Muitos deles acompanhados pela #sigma.

Segundo um estudo do iDrama Lab, grupo de pesquisa internacional que estuda problemas sociotecnológicos relacionados a danos online e segurança cibernética, os frequentadores da manosfera têm deixado gradualmente, nos últimos anos, de se engajar em comunidades sobre sedução e ativismo pelos direitos dos homens, populares no fim dos anos 2000.

Esse grupos têm sido substituídos por grupos e fóruns online sobre incels e aqueles que seguem a filosofia MGTOW (Men Going Their Own Way; Homens Seguindo Seu Próprio Caminho, em português). Essa ideologia, assim como a da red pill, diz que a sociedade é manipulada contra os homens, mas que é impossível mudá-la. A única solução, então, seria abandonar as mulheres e seguir seu próprio caminho.

Analisando 28 milhões de publicações feitas entre 2008 e 2019 em 6 fóruns e 51 subreddits com uma API (sigla em inglês para Interface de Programação de Aplicações) e um léxico de palavras misóginas, o estudo também descobriu que essas últimas comunidades têm gerado publicações com maior nível de toxicidade e ódio contra mulheres que aquelas famosas no começo da última década.

Não é simples, entretanto, medir o quão grande é a manosfera e qual é impacto do seu discurso, já que usuários podem criar mais de uma conta nas redes ou podem consumir conteúdos sem se inscrever nas plataformas.

"A estimativa é que o número de pessoas que frequentam a manosfera esteja na casa de um milhão de pessoas. Mas o que a caracteriza é que há uma massa substancial de pessoas nela que é muito ativa", diz o pesquisador brasileiro Manoel Horta Ribeiro, doutorando da EPFL (Escola Politécnica Federal de Louseanne), na Suíça, que participou do estudo do iDrama Lab.

"É uma comunidade bem estruturada, com grande capacidade de monetização, na qual as pessoas se apoiam financeiramente", afirma Ribeiro.

Segundo a pesquisadora Michele Prado, que estuda a extrema direita, o público jovem presente em redes como o TikTok pode ser afetado pelo discurso misógino que corre na manosfera. Prado é autora dos livros "Tempestade Ideológica" (ed. Lux, 2021) e "Red Pill - Radicalização e Extremismo", que será em breve lançado no Brasil.

"Um menino de 11 anos, por exemplo, no começo da sua vida afetiva. Ele se sente chocado. Já começa muito cedo a entrar em um mundo onde todos os conceitos levam para a supremacia. A supremacia de gênero leva então à racial, à religiosa e a tantas outras", ressalta Prado.

Essas comunidades, defende a especialista, funcionam como portas de entrada para a direita alternativa. "Estamos falando de subculturas online extremistas, de misoginia extrema, onde a supremacia masculinista é a regra, e onde entram também as teorias conspiratórias da direita que relacionam o avanço dos direitos civis das mulheres a obras de complôs ocultos", diz. "Com os sigmas, sempre vemos referências neofascistas. Alguns consideram aprazíveis regimes como o de Franco e de Salazar".

Por outro lado, a manosfera também agrega relatos frequentes de sofrimentos desses homens, segundo André Villela de Souza Lima Santos, psicólogo e pesquisador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP). Santos pesquisa masculinades, redes sociais e misoginia virtual.

"Não que isso seja uma escusa, ou uma desresponsabilização dessas pessoas. Mas são frequentes os relatos de inseguranças sobre relações amorosas, sobre aparência, relatos de depressão e ansiedade", diz o pesquisador. "Também são comuns relatos de sofrimento de cunho econômico, desesperança em relação ao próprio futuro, por exemplo: 'eu nunca tive dinheiro para estudar, tenho 30 anos, não fiz faculdade e tenho um sub-emprego'".

Ao mesmo tempo, afirma Santos, há ressentimento e insegurança em relação à conquista de mais direitos e maior ocupação do espaço público pelas mulheres nas últimas décadas. Para essas questões, então, há acolhimento na manosfera. "Ela oferece respostas para gente que está completamente perdida. Tem uma lógica distorcida, mas que é coerente internamente", diz.

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