Os perdigueiros grandalhões Kenzo e Jicky disparam a toda velocidade atrás da bolinha arremessada longe pela arquiteta Zuleika Malta, 66. Inaugurado há quatro meses no parque do Ibirapuera, na zona sul de São Paulo, o cachorródromo quase do tamanho de um campo de futebol é cercado por um gradil firme e isso deixa a tutora despreocupada para brincar com os cães que têm nomes de perfumes.
É impossível não notar que o gramado está decorado com mobiliário gigante cujas peças imitam um comedouro e brinquedos caninos. Tudo estampado com a marca do patrocinador.
Dois anos e meio após ter efetivamente assumido a gestão do principal parque paulistano, a Urbia avança na instalação de equipamentos e oferta de serviços apoiados por empresas interessadas em expor suas marcas em um dos principais cartões-postais da cidade.
"O parque está bem melhor, mais bonito e conservado. Essa propaganda toda, sinceramente, incomoda um pouco, mas acho que é um mal necessário para que se faça a conservação", diz Malta.
Anúncios, logotipos e logomarcas estão, de fato, por toda parte. Gravados nas quadras de basquete, pista de skate e grades do campo de futebol que os patrocinadores ajudam a manter. Em breve, uma loja de artigos esportivos também irá inaugurar uma academia.
Painéis eletrônicos fazem propaganda de uma companhia aérea e de outros serviços. Vendedores de água de coco, tradicionais no antigo Ibirapuera, agora concorrem com franquias que ajudam a deixar o parque com jeito e preços de shopping.
"Desisti de tomar o sorvete porque custava R$ 17,90. Acho que não é um preço normal para uma casquinha de um sabor", conta a carioca Elaine Moreno, 32, que aproveitou a viagem a trabalho para visitar o parque. Ela elogiou, porém, a segurança. "É um dos lugares onde me sinto segura para andar com o celular na mão e tirar fotos."
Reclamar da poluição visual provocada pela propaganda não é implicância. A contemplação, que no caso de uma área verde pode ser compreendida como a possibilidade de admirar a natureza, é uma atribuição primária do parque, segundo a arquiteta e urbanista Claudia Cahali, da Associação Viva Moema e representante do segmento de entidades sociais no Conselho Gestor do Ibirapuera.
- A paisagem do parque Ibirapuera, em São Paulo, tem sido alterada pelo aumento da presença de publicidade.
- Diversos tipos de anúncio, como painéis de LED, foram instalados nos últimos meses.
- A instalação é justificada como uma forma de gerar receita e economizar R$ 1 bilhão dos cofres municipais em 35 anos, diz a concessionária Urbia.
- A mudança na paisagem tem gerado críticas por parte de frequentadores e especialistas em urbanismo.
- Alguns argumentam que a publicidade prejudica a experiência dos visitantes, além de contribuir para a poluição visual.
- Outros defendem que é possível conciliar a publicidade com a preservação e a valorização do patrimônio cultural do parque.
- Especialistas alertam para a necessidade de se pensar em soluções sustentáveis para a gestão dos parques urbanos.
"O parque é primordialmente um local de contemplação, tem uma área ambiental e de preservação importante. É tombado nas três esferas [municipal, estadual e federal] e o tombamento inclui a paisagem e o paisagismo", diz Cahali.
"Eu costumo resumir o parque atualmente como um imenso canteiro de obras, transformado em arena de eventos e local para ativação de marcas, produtos e serviços", diz a urbanista.
Parcerias com outras empresas, que expõem suas marcas e vendem produtos e serviços no parque, estão entre os pilares de sustentação do modelo de gestão da Urbia, cujo contrato para concessão do Ibirapuera também impôs a gestão de outros parques na cidade.
A operação é integralmente suportada pela concessionária, diz a Urbia, que também afirma que isso representará uma economia superior a R$ 1 bilhão para os cofres públicos ao longo dos 35 anos da concessão. Além de sustentar o dia a dia, a empresa promete investir mais de R$ 180 milhões em reformas, obras de acessibilidade e construção de novos equipamentos de apoio aos usuários.
Apoiada em pesquisa realizada pela prefeitura, a Urbia diz que a disposição de marcas no parque é considerada satisfatória para 74% dos frequentadores.
Entre os prós e os contras, "o conjunto da obra é positivo", diz Fernando Pieroni, diretor-presidente do instituto Semeia, organização sem fins lucrativos especializada em desenvolver parcerias entre setor público e privado para a gestão de parques naturais.
"O excesso de publicidade é um risco e, por isso, é importante que o concessionário mantenha a escuta e o diálogo com a sociedade para refinar o que ele está fazendo", diz Pieroni. "Mas o parque não perdeu a característica de espaço de natureza. Ficou mais diversificado."
A falta de diálogo com a comunidade, porém, é justamente um dos pontos considerados falhos desde o processo de concessão do Ibirapuera, segundo Vera Luz, professora de arquitetura e urbanismo da PUC de Campinas.
"Não houve propriamente uma intensa discussão popular sobre como realizar a manutenção e gestão do parque, mas uma decisão de cima para baixo, em conferir esta função pública à iniciativa privada", diz Luz.
"Como decorrência temos a utilização do parque como um outdoor tridimensional. Naturaliza-se o espaço público como mais um elemento de merchandising, numa sociedade em que já está tudo à venda. Só assim se paga? Toda coisa pública tem que apresentar solvência financeira? Eu tenho convicção que não", afirma a professora.
Pieroni, do instituto Semeia, contra-argumenta que a necessidade de buscar o setor privado para a manutenção de parques é exemplificada pela situação da própria marquise do Ibirapuera, cuja reforma é por contrato de responsabilidade da prefeitura.
A estrutura projetada por Oscar Niemeyer está interditada para reparos há quatro anos. Para frequentadores, além da perda de um espaço de lazer, a marquise quase totalmente bloqueada por uma cerca —existem apenas alguns pontos de passagem— dificulta a circulação.
Em nota da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente, a prefeitura disse ter finalizado "o projeto de restauro da Marquise José Ermírio de Moraes do Parque Ibirapuera e, agora, está em processo licitatório a contratação das obras".
"Após a ordem de início, a estimativa de conclusão é de 18 meses. O orçamento previsto para a execução dos serviços é de R$ 60 milhões", informou a prefeitura.
Sobre a possível interferência na paisagem tombada do parque, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da cidade respondeu, por meio da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, que é a CPPU (Comissão de Proteção à Paisagem Urbana) o órgão da prefeitura responsável por orientar e arbitrar sobre a inserção de elementos visuais na paisagem urbana do município.
O CPPU, diz a nota da prefeitura, informou que a concessão prevê que a exposição de marcas deve atender a Lei Cidade Limpa.
Apesar da melhora geral nas condições do parque relatada por frequentadores à reportagem, há reclamações sobre os congestionamentos de veículos para o acesso ao estacionamento em dias de maior movimento.
A Urbia informou que vem estudando formas para amenizar as filas de carros e reforçou que há facilidade de acesso ao local por meio de transporte público, já que a região faz parte do itinerário de ônibus de diversas regiões da cidade.
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