Descrição de chapéu drogas

Comunidades terapêuticas não terão mais órgão exclusivo no governo Lula

Após pressão, departamento anunciado em janeiro mudará de nome para contemplar abordagem multidisciplinar para dependentes químicos

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São Paulo

As comunidades terapêuticas (CTs) vão deixar de ter um setor exclusivo para elas no governo Lula (PT).

Anunciada em janeiro, a criação do Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas enfureceu movimentos sociais que há muito criticam instituições financiadas pela União para tratar dependentes de álcool e drogas, quase sempre fundindo elementos religiosos ao tratamento.

O CNS (Conselho Nacional de Saúde) se apressou em pedir a extinção do órgão sob jugo do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

Pacientes sentados em cadeiras assistem em palestra em uma capela da comunidade
Pacientes da comunidade terapêutica Conquista, em Itapecerica da Serra (Grande SP), assistem a palestra - Eduardo Knapp/Folhapress

Não chegará a tanto, mas uma mudança no nome sinaliza que a primazia dessas comunidades sobre outras formas de recuperação está em perigo. Passará, após decreto, a se chamar Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento Atuantes em Álcool e Drogas.

A pasta diz, em nota à Folha, que a ideia é adotar uma "abordagem multidisciplinar" que envolva "atividades de prevenção, atenção e reinserção social", dialogando portanto "com todas as opiniões sobre esse tema".

O governo federal gasta hoje R$ 214 milhões em 611 CTs que geram 15.703 vagas. O bombardeio parte da sociedade civil e até de alas do governo. Os argumentos variam: basta fiscalizar a fundo para encontrar exemplos de conversão compulsória, trabalho forçado e precarização da saúde.

A psicóloga Marisa Helena Alves, da Comissão de Saúde Mental do CNS, sintetiza o azedume com o modelo que começou a receber verbas federais na gestão Dilma Rousseff (PT), prosperou com Michel Temer (MDB) e encontrou seu mais receptivo parceiro em Jair Bolsonaro (PL).

Ela reprova o uso de metodologias baseadas "em preceitos religiosos e não nos cuidados preconizados pelas ciências". Também refuta a abstinência como única alternativa terapêutica, sem técnicas de redução de danos.

Entidades que representam as CTs montam artilharia própria. Qualquer internação, dizem, é voluntária. E a oferta espiritual dentro das casas, ao menos nas sérias, não é obrigatória.

Ter religião no dia a dia das comunidades não é necessariamente um problema, diz Egon Schlüter, da Confederação Nacional das Comunidades Terapêuticas. Resolução do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas) de 2015, que regulamenta as CTs, já falava em "atividades de desenvolvimento da espiritualidade".

O que precisam é respeitar a liberdade de crença prevista na Constituição, afirma. Ou seja, não podem impor uma fé, como condicionar a vaga à frequência no culto.

Schlüter lembra que a Organização Mundial da Saúde reconhece a espiritualidade como "um fator positivo no processo de recuperação da pessoa". Para ele, o CNS tem "uma visão ideológica" fora de sintonia com o Conad e a própria realidade.

Pesquisa do Ipea de 2017 apontou que o país tinha então cerca de 2.000 CTs —47% de orientação evangélica, e 27%, católica. A ampla maioria (96%) inseria componentes espirituais no cotidiano, mesmo aquelas sem vínculo com organizações religiosas.

As comunidades tiveram influência de movimentos cristãos americanos, do Teen Challenge ao projeto que alicerçou os 12 passos dos Alcoólicos Anônimos. Doutoranda em ciência política da USP que pesquisa o tema, Ana Cortez também resgata a pioneira Fazenda do Senhor Jesus, criada em 1986 pelo padre Haroldo sob o tripé "disciplina, oração e trabalho".

Para Cortez, é crucial entender as CTs como grupo não homogêneo, que abrange desde unidades clandestinas até as que desenvolvem um trabalho sério, em geral ligadas a federações da área.

Se as igrejas ocuparam esse campo, o Estado tem sua parcela de culpa. Demorou demais para desenvolver políticas de auxílio a dependentes. Padres e pastores, ela afirma, "chegaram primeiro e passaram a lidar especialmente com a demanda de famílias que não tinham recursos para pagar clínicas privadas".

O poder público também não foi ágil em regulamentar essa esfera. "A primeira tentativa ocorreu apenas em 2001, 40 anos após o início [das CTs] no país, e ainda há muita dificuldade de fiscalização."

Mesmo quem não é muito fã do modelo admite que ruim com ele, pior sem ele. Não haveria como o governo cuidar sozinho de todo o contingente atendido por essas entidades.

Secretária Nacional de Políticas sobre Drogas, Marta Machado diz que as CTs "têm trabalho extenso de acolhimento, especialmente para um público de extrema vulnerabilidade". É preciso trabalhar com essa "realidade colocada" sem relaxar para "princípios mínimos", descredenciando instituições que exijam provas de fé ou apliquem castigo físico, por exemplo.

Na Grande SP, ex-interno coordena serviços de comunidade

Existe o "padrão ouro", e as comunidades que não o seguem geram má fama a todas, diz a enfermeira Paula Mangialardo da Luz, responsável técnica da Conquista.

A Folha visitou esta comunidade fundada por um pastor em Itapecerica da Serra (Grande SP). São 35 vagas arcadas com repasses federais de R$ 1.170 para cada uma, diz seu coordenador de serviços, Raphael Freires, 41. Também há internos particulares, que pagam até R$ 1.200 por mês. Mas o custo mínimo, por cabeça, é de R$ 2.500. A conta fecha com doações, inclusive de igrejas.

Homem de camisa, bermuda e chinelo olha para a câmera sentado em um beliche
Marcos Rios, 62, no quarto que divide com mais três internos da comunidade Conquista - Eduardo Knapp/Folhapress

"Jesus guarda essa casa", diz a placa na porta do cômodo onde ele, de camisa do Beatles, e a enfermeira, de jaleco, conversam com a reportagem.

A chácara tem piscina, barbearia e uma biblioteca com Pablo Neruda e Monteiro Lobato. Também conta com regras, como privação até de cigarros. O portão fica aberto para quem quiser sair.

Freires se lembra de quando pisou ali pela primeira vez. Foi como interno.

Adepto do crack, tentou vender a aliança num farol para financiar o vício. Vendedor das Casas Bahia, faltava direto ao serviço e já deixou a filha de seis anos chorando do lado de fora do carro para passar numa biqueira.

Naqueles tempos, diz o hoje fiel da Igreja Batista de Água Branca, tudo era "muito mais religioso, com culto, aquela coisa bem avivada". Era "oração e enxada", além de punições para quem descumprisse normas. Recorda do camarada pego com cigarro e punido com 40 dias lavando louça.

Com a chegada do financiamento estatal veio a profissionalização, diz.

Hoje a CT é local de trabalho para ele e de esperança para Marcos Rios, 62. Ele conta que começou a cheirar cocaína já "coroa", com 45 anos, de forma recreativa e também para varar madrugadas como taxista num Corolla que transportava Jô Soares e outros artistas. "Você tem que estar louco para acompanhar a noite louca de São Paulo."

Admirador da Igreja Católica e batizado na pentecostal Novo Tempo, Rios chama de culto o que os coordenadores do espaço definem como "reuniões espirituais", oferecidas três vezes por semana. Às vezes sai em excursão para templos próximos, diz.

"Os 12 passos estão na Bíblia", afirma o ex-adicto Freires. Ele brinca que o livro de Gênesis descreve o "primeiro porre" da humanidade: "Um dia Noé bebeu muito vinho, ficou bêbado e se deitou nu dentro da sua barraca". O filho Cam flagrou seu estado, e Noé amaldiçoou o neto Canaã para retaliar.

Há uma Bíblia com foco em reabilitação. Na contracapa, a sentença: "Sem Deus não há recuperação, apenas desapontamentos e repetidas falhas".

Ninguém é obrigado a participar das atividades religiosas, diz a enfermeira Luz. A maioria espelha uma sociedade de maioria cristã, mas há pluralidade de crenças ali. "Se é espírita e quer tomar passe, ok."

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