Descrição de chapéu Folhajus drogas

Quanto de droga pode ser considerado para uso próprio? STF deve definir critério

Adotar quantidades máximas para identificar usuários pode reclassificar até 50% dos processos de apreensão de maconha, segundo Ipea

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Toulouse (França)

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira (6) o julgamento do recurso que pede a descriminalização o porte de drogas para consumo pessoal no Brasil. Com ele, volta à pauta o debate sobre quais critérios objetivos podem distinguir usuários de traficantes.

A Lei de Drogas (11.636/2006) manteve o uso de drogas como crime, mas retirou dessa conduta a pena de prisão. Seu artigo 28 afirma que "para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente".

A falta de um parâmetro objetivo para diferenciar usuários de traficantes fez dessa classificação um exercício subjetivo de autoridades policiais, do ministério público e do Judiciário. Na prática, uma mesma quantidade de droga pode ser considerada como para uso pessoal por uma autoridade policial e como tráfico por outra. E, no lugar de diminuir prisões de usuários, a lei aumentou a proporção de pessoas presas por tráfico de drogas.

Em 2005, antes da lei, 14% dos presos brasileiros eram acusados ou condenados por tráfico de drogas. Em junho de 2022, esse percentual já era de quase 30%.

Estudos apontam que muitos presos tinham quantidades pequenas de drogas e que pessoas negras foram consideradas como traficantes mesmo de posse de quantidades muito menores do que aquelas que classificaram pessoas brancas como usuárias.

Manifestantes durante a Marcha da Maconha, na rua da Consolação, em São Paulo - Gabriel Cabral - 17.jun.23/Folhapress

"A não existência de critérios objetivos para distinguir usuários de traficantes é um dos grandes motivos de termos um Judiciário e uma polícia que prendem pessoas em função de sua cor de pele e de seu endereço ser ou não na favela", aponta Pedro Abramovay, diretor para a América Latina da Open Society Foundation e ex-secretário Nacional da Justiça.

"Essa é uma situação inconstitucional. O Supremo tem a obrigação de estabelecer critérios", avalia.

Em 2015, no início do julgamento do Recurso Extraordinário nº 635.659, o ministro Luís Roberto Barroso sugeriu que usuário fosse aquele que tivesse até 25 gramas de maconha para consumo pessoal, a exemplo do limite adotado em Portugal em 2001, ou de seis plantas fêmeas. Alexandre de Moraes, no último dia 2 de agosto, ampliou esse critério para até 60 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas.

Ainda em 2015, o Instituto Igarapé reuniu 47 especialistas no tema para a elaboração de uma nota técnica sobre o tema.

O documento traz três cenários. No primeiro deles, usuário seria aquele com até 25 gramas de maconha ou 6 pés florescidos da planta ou 10 gramas de cocaína ou de crack. No segundo, as quantidades seriam, respectivamente, 40 gramas, 10 pés ou 12 gramas. E, no terceiro, 100 gramas de maconha, 20 pés de plantas florescidas e 15 gramas de cocaína ou crack.

Esses cenários foram avaliados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) num estudo que levantou as quantidades de drogas apreendidas com pessoas acusadas ou condenadas por tráfico no Brasil, que tem a terceira maior população carcerária do planeta, atrás de EUA e China.

Foram avaliados 48.532 processos por tráfico de drogas que tiveram sentença em 2019.

Se o STF adotasse critérios do cenário 1, com limite de 25 gramas de maconha, 31% dos processos de tráfico com apreensão de cânabis seriam reclassificados para uso, agora descriminalizado, e seriam soltos. Para cocaína (10 g), seriam impactados 34% dos processos.

O cenário 2 teria impacto sobre 37% dos processos de maconha e 36% de cocaína ou crack. O cenário 3 resultaria na reclassificação de 51% dos processos com maconha e de 40% daqueles com cocaína ou crack.

"Estamos meio século atrasados neste debate", afirma o psiquiatra Dartiu Xavier, especialista em dependência química e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que assinou a nota técnica de 2015. "Na Europa dos anos 1980 já estava introjetada a ideia de que a pessoa pega consumindo drogas não deveria ser presa. Descriminalização não deveria nem ser discutível, mas obrigatória."

Na América Latina, países como Colômbia, México, Argentina, Costa Rica e Uruguai descriminalizaram posse para consumo de várias drogas.

Para Xavier, os critérios objetivos mais interessantes são aqueles do terceiro cenário. "Acho preferível pecarmos por excesso do que por falta."

"A meu ver, essas quantidades deveriam ser revistas", afirma o médico Francisco Inácio Bastos, pesquisador da Fiocruz e coordenador da Pesquisa Nacional sobre o uso de crack, que também subscreveu à nota técnica de 2015.

"O mercado está mudando muito rápido e com substâncias sintéticas, como opióides e canabinóides sintéticos, que podem estar misturadas e escapam à detecção", afirma ele, que tem pesquisado a presença de fentanyl no Brasil, droga responsável por uma epidemia de overdoses nos EUA. "Minha visão está muito contaminada pelo fato de eu ser médico e pensar no dano à saúde. Eu precisaria ouvir outras pessoas antes de definir uma posição novamente."

A advogada Marina Dias Werneck, diretora-executiva do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), que também assinou a nota de 2015, avalia o cenário 1 como "extremamente perigoso porque a gente pode, inclusive, aumentar ainda mais o encarceramento em razão da quantidade pequena de droga estipulada como parâmetro".

Para o médico Ronaldo Laranjeira, professor da Unifesp adepto de posições conservadoras sobre política de drogas, "fixar uma dose de drogas [para diferenciar usuários de traficantes] é uma bobagem e vai fazer com que nenhum pequeno traficante seja preso, já que os sistemas de delivery de pequenas quantidades de drogas são comuns nas grandes cidades".

A prisão de pequenos traficantes, no entanto, não tem demonstrado exercer impacto significativo no mercado de drogas nem no crime organizado ligado ao tráfico, que substitui rapidamente esses agentes e segue seus negócios.

O procurador-geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Mario Sarrubbo, é contra a descriminalização da posse para uso pessoal porque, para ele, o uso é a etapa final de uma longa cadeia de delitos que trazem prejuízo à segurança pública. "A criminalização da posse de drogas para consumo pessoal é, no Brasil, no momento atual, um imperativo para os enfrentamentos dos graves problemas de saúde e de segurança públicas causados pelo tráfico ilícito de drogas."

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