Usuários dizem viver o 'inferno na terra' na cracolândia e temem ações policiais

Aglomeração no centro paulistano tem até shopping e nunca vai acabar, na avaliação deles

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Da esquerda para a direita, uma mulher de 44 anos com uma camiseta preta, um homem de 53 anos com boné e sem camisa com diversas tatuagens no corpo, um homem de 33 anos de camiseta cinza e boné branco virado para trás, uma mulher com não esquerda no queixo

Da esquerda para a direita, Ana Maria Alves Ferreira, 44, Jailson Antonio de Oliveira, 53, Tomas dos Santos, 33, e Daniele Arrojo, 28 Danilo Verpa/Folhapress

São Paulo

Viver na rua em São Paulo é um perigo constante, com dissabores como o frio, a fome, a sede e a falta de sanitários. Mas um lugar, classificado por usuários de drogas como o "inferno na terra", unifica todos os problemas: a cracolândia.

Não importa a rua da região central paulistana em que esteja, ela leva pânico a moradores, comerciantes e a quem precisa passar pelo bairro.

Em duas quintas-feiras a Folha esteve nas proximidades do fluxo, como é chamada a aglomeração de usuários, que se formou na rua dos Gusmões, na Santa Ifigênia, e conversou com dependentes químicos, que relataram o sofrimento a cada operação policial e a cada mudança de endereço.

Durante as conversas, eles demonstraram uma preocupação homogênea: o medo de serem vítimas de um novo Carandiru, relembrando o massacre de 111 presos por tropas da Polícia Militar na Casa de Detenção em 2 de outubro de 1992.

O sol bate forte na Santa Ifigênia no final da manhã do último dia 27. Um homem sem camisa e repleto de tatuagens se aproxima da reportagem. Ele é Jailson Antonio de Oliveira, 53, conhecido como Corintiano. Logo no início da conversa ele diz ter visto a morte de perto há cerca de um mês, em 8 de julho, quando foi obrigado a seguir para a área sob a ponte Governador Orestes Quércia, no Bom Retiro.

Jailson Antonio de Oliveira, 53, conhecido como Corintiano, frequenta a cracolândia há 30 anos; ele diz ter ficado com medo de morrer ao ser conduzido pela polícia para o bairro do Bom Retiro
Jailson Antonio de Oliveira, 53, conhecido como Corintiano, frequenta a cracolândia há 30 anos; ele diz ter ficado com medo de morrer ao ser conduzido pela polícia para o Bom Retiro - Danilo Verpa/Folhapress

"A gente estava na rua dos Gusmões, de repente a polícia cercou. A Polícia Civil, a Militar e a GCM, e nos sequestraram. Sequestraram dizendo para sair daqui e ir até a Prates, sob força. Bateram em mim, jogaram spray na minha cara."

Ele classificou a situação de emboscada. "Para sair, tive que subir a ponte, pular a ponte, arriscar a minha vida. Os demais ficaram lá sendo oprimidos a noite toda sem água, sem nada, sem manta, num lugar onde tinha cachorro morto e cheio de fezes no chão. Eu estava vendo que uma hora ou outra ia ter um assassinato como na Casa de Detenção."

Há três décadas na cracolândia, ele afirma ter conseguido ficar sem usar drogas por cinco anos, mas o crack falou mais alto. E, enquanto conversa com a reportagem, não se cansa de citar a palavra opressão, demonstrando ainda não ter se acostumado com as cenas a que assiste. "A opressão aqui no centro de São Paulo é todo dia. É porrada, é tiro, é bomba."

Chorei ontem com vontade de usar droga. O crack é uma doença? O crack não é uma doença. É uma química que a gente injeta no corpo e o organismo acostuma e pede.

Jailson Antonio de Oliveira, 53

dependente químico

Oliveira sustenta o vício fazendo bicos. Já foi preso mais de uma vez por furto e afirma que faz de tudo para não usar droga por meio do crime.

"Chorei ontem com vontade de usar droga. O crack é uma doença? O crack não é uma doença. É uma química que a gente injeta no corpo e o organismo acostuma e pede. Ontem mesmo eu estava com vontade de usar. Não tinha dinheiro e nem nada. Pensei e ir roubar e, falei: ‘vou roubar nada’. Peguei e fui dormir."

Para Oliveira, já passou da hora de os governantes arrumarem um espaço para os dependentes químicos, uma vez que, segundo ele, o fluxo não vai sair do centro.

Quem também está há anos na região central é Ana Maria Alves Ferreira, 44. Entre idas e vindas são 26 anos na cracolândia.

Mãe de sete filhos, ela diz que consegue seu sustento por meio de limpezas em apartamentos e hotéis e vendas no "shopping c", como os usuários chamam o comércio local, em que roupas, alimentos e calçados são expostos no chão ou em caixotes em meio aos usuários e vendedores de drogas. Com o dinheiro, paga quartos em pensões onde pode tomar banho quente.

A auxiliar de limpeza afirma que, há oito anos, foi baleada na cracolândia, justamente quando tentava pegar seus pertences em meio uma operação. Mesmo com muitas intervenções no currículo, ela diz que a atual é a pior.

"Está sendo a pior [fase], porque eles estão oprimindo demais a gente. Antigamente eles chegavam, acalmavam, deixavam a gente em um lugar. Agora estão oprimindo. A prefeitura vem, distribui cobertor, mas do que adianta distribuir cobertor se a gente dorme hoje e amanhã tomam da gente?"

Ferreira é mais uma a afirmar que a cracolândia não vai acabar.

A reportagem aguarda para falar com mais pessoas quando aparece um homem com um largo sorriso contando a outros usuários que havia sido convidado pelo irmão para ir à praia. A viagem seria na manhã seguinte. Há três anos no fluxo, Tomas dos Santos, 33, diz presenciar injustiças praticadas pela polícia.

Santos afirma que integrava o grupo levado para o Bom Retiro na noite de 8 de julho. Ele também usa a palavra sequestro para se referir à forma como foram conduzidos.

Homem negro está de braços cruzados, camiseta cinza e boné branco virado para trás. Ele está em pé, de frente
Tomas dos Santos, 33, diz que está há três anos fluxo da cracolândia, no centro de São Paulo - Danilo Verpa/Folhapress

"Tinha gente que iria embora para casa, queria voltar, eles não deixaram. Batia, fazia voltar de novo. Levou para baixo daquela ponte, tinha cachorro morto, tinha um monte de lixo, uma escuridão. Não tinha helicóptero, não tinha ninguém. Se eles quisessem fazer um massacre com a gente, eles faziam e jogavam para dentro do rio."

Santos é outro que consegue dinheiro trabalhando no "shopping c". "Vou na cracolândia e monto minha lojinha de roupa no chão. Uma camiseta, uma bermuda, tudo bonitinho e espero alguém vir comprar. Enquanto isso vou fazendo um rolinho aqui outro lá até ganhar um dinheiro. Tem um shoppinzinho, tem de tudo, é roupa, alimentação, não é só droga como outros falam."

A reportagem reencontra Santos na quinta-feira seguinte e pergunta sobre a viagem. Ele diz não ter ido após perder a hora. "Tinha que acordar às 8h, mas acordei às 10h."

Em comparação a Santos, Daniele Arrojo, 28, tem mais tempo de fluxo. Está na aglomeração desde 2018, onde foi parar após um desacerto no casamento.

Arrojo diz que há cerca de cinco anos passou a beber, hábito que seu companheiro, com quem se casou aos 14 anos, não suportava. Ela afirma ter sido agredida. Foi aí que seguiu para a cracolândia.

"No começo apanhei dos usuários, fui estuprada. Voltei para minha mãe." Foi na volta para casa que descobriu que seus filhos haviam seguido para um abrigo. Ao se lembrar das crianças, Arrojo se emociona. Um respiro, uma mexida em seus cabelos cacheados e volta a conversar.

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Daniele Arrojo, 28, diz que foi parar na cracolândia após ter problema no casamento - Danilo Verpa/Folhapress

De volta ao fluxo, ela passou a vender drogas e se tornar alvo dos policiais, de quem diz ter sido tratada com frases de cunho racista. Com medo de ser presa, voltou para a mãe.

Em 2020, com a vida patinando, diz que decidiu se jogar do elevado Presidente João Goulart, o Minhocão. Dois meses após a queda, retornou para o fluxo e foi presa por tráfico na praça Júlio Prestes, antigo endereço da cracolândia.

Permaneceu encarcerada por três meses em um centro de detenção provisória. Quando conversou com a reportagem pela primeira vez, em 27 de julho, ela estava havia um mês sem usar crack. Uma semana depois, veio a recaída: "Estou há 24 horas sem dormir".

Sobre a atuação das forças de segurança na cracolândia, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) diz que as polícias Civil e Militar são instituições legalistas, que seguem protocolos rígidos de atuação seguidos à risca inclusive durante as operações Resgate e Impacto Centro, realizadas pela PM na região.

A pasta da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) também afirma que aumentou o número de policiais que atuam na região central e que criou uma ferramenta para mapear a evolução criminal e a produtividade policial.

Segundo a secretaria, toda semana são realizadas reuniões para analisar resultados e avaliar novas medidas que possam ser adotadas a fim de garantir o atendimento médico e social aos usuários de droga, além de ampliar a segurança da população que vive ou frequenta a região central.

Procurada, a gestão Ricardo Nunes (MDB) declarou que a Secretaria Municipal de Segurança Urbana e a GCM não compactuam com desvios de condutas de seus agentes e que todas as denúncias de possíveis irregularidades, que podem ser registradas na Ouvidoria Municipal de Segurança Urbana ou na Corregedoria Geral da corporação, são rigorosamente apuradas.

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