Vila é tombada após ser quase toda demolida para dar lugar a prédios em SP

Cinco sobrados ganham proteção quatro anos depois do pedido ao Conpresp; 55 foram derrubados

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São Paulo

Quatro anos depois de ser quase totalmente demolida, a vila operária João Migliari passou a integrar o patrimônio histórico e cultural da cidade de São Paulo. A conclusão do processo de tombamento impede que as cinco casas restantes —eram 60— desapareçam de um trecho do distrito do Tatuapé, zona leste, onde o mercado imobiliário vem promovendo intensa transformação, incluindo a construção do edifício mais alto da capital paulista.

Imagem mostra esquina com cinco sobrados com cores terrosas ao lado de um grande prédio em construção e com outros ao fundo
Cinco sobrados remanescentes da vila operária João Migliari estão agora cercados de prédios em construção, após outras 55 casas do conjunto terem ido abaixo em 2019 - Adriano Vizoni - 21.jul.2023/Folhapress

Formada por três fileiras de casas construídas nos anos 1950, cada uma com 20 sobrados, a vila teve o seu primeiro terço demolido no início de 2019. A quadra que abrigava esta parte do casario pertence à Porte Engenharia e Urbanismo, incorporadora responsável por um amplo complexo de edifícios de usos residenciais e comerciais ao longo da rua Platina.

Em construção, o Eixo Platina ocupa quarteirões próximos às estações Tatuapé e Carrão, da linha 3-vermelha do metrô. A cordilheira de prédios está surgindo em paralelo à Radial Leste, principal via arterial para ligação da mais populosa região da cidade ao centro.

Tão logo tomou ciência do início da demolição, o arquiteto Lucas Chiconi e outros moradores do bairro decidiram pedir o tombamento ao Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultura). O ótimo estado de conservação das casas passava para a vizinhança a impressão de que aquela era uma área já incluída na lista do patrimônio urbano paulistano. A preservação, porém, era apenas uma exigência feita aos inquilinos enquanto os construtores e proprietários originais dos imóveis estavam vivos.

Meses depois, o Conpresp marcou uma reunião para discutir o caso. Mas o encontro, agendado para 2 de setembro de 2019, foi precedido pela derrubada de 35 das 40 casas restantes. A ordem partiu de Bruno Lembi Neto, herdeiro dos construtores, e foi executada no fim de semana que antecedeu a discussão sobre o tombamento.

Com quase toda a vila no chão, o órgão deu início ao processo de preservação, concluído na semana passada. Além do casario remanescente no Tatuapé, outras duas vilas, no Belém, também na zona leste, e no Pari, região central, foram tombados.

Lembi disse à Folha nesta segunda (11) que avalia medidas para tentar reverter a decisão, pois ela representa importante prejuízo aos negócios da família.

"O Conpresp tombou essas 5 casas e outros 41 imóveis da nossa família. Ter 46 imóveis tombados cria enormes dificuldades para a nossa estrutura familiar, que depende disso", contou Lembi, que também é sócio minoritário de uma gestora de ativos negociados no mercado financeiro.

Apesar da disputa envolvendo o órgão de proteção ao patrimônio, foi graças ao inquilino de uma das casas remanescentes no Tatuapé que aquele pedaço da vila não foi ao chão no fim de agosto de 2019.

Ivan Vasconcelos, 60, era dono de um bar e barbearia que funcionava numa das casas. Ele pediu na Justiça indenização. Queria ser compensado pelo investimento de R$ 200 mil na reforma do estabelecimento, concluída em 2016. Conseguiu uma decisão provisória impedindo a destruição da unidade da qual era locatário. Isso não bastou.

"Eles iriam demolir assim mesmo, num sábado, mas eu fui na prefeitura e chamei os fiscais. No domingo, voltaram, quando não tinha mais ninguém. Mas eu não deixei derrubar", conta Vasconcelos. "Eu estava apenas defendendo o meu negócio."

Como o imóvel fazia parte de um bloco estrutural, a bola rompedora feita de aço não pôde ser utilizada para pôr abaixo a última fração da vila.

Marretas foram empregadas para destruir parcialmente os sobrados conjugados. Mas a destruição teve de ser definitivamente paralisada devido ao início das discussões no Conpresp.

Vasconcelos não conseguiu, porém, continuar pagando o aluguel do imóvel. A chegada da pandemia de Covid, em 2020, fez a clientela quase desaparecer. Em meio à disputa com o proprietário, não obteve desconto no aluguel. "Ele não quis negociar", conta.

Aposentado pelo INSS, o ex-proprietário da barbearia ainda espera a Justiça decidir sobre seu pedido de indenização. Sem capital, não conseguiu empreender novamente. "Eu vendi o apartamento onde criei meus filhos para investir naquele negócio", lamenta. "Até o momento, o meu prejuízo é total."

Diretor de atuação regional do IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil), Chiconi explica que detalhes sobre a decisão do Conpresp devem ser publicados nos próximos dias.

Para o arquiteto, a vitória obtida acerca das vilas operárias tem caráter didático quanto ao direito de preservação da memória em toda a cidade, além dos bairros onde mora a elite paulistana.

"Enquanto sociedade, ainda temos dificuldade em aproximar esse assunto, sobre esse tipo de legislação, das pessoas, mesmo em uma região próspera e central [como o Tatuapé]", comenta Chiconi.

O Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria de Cultura, órgão da gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB), deverá apontar no documento questões como o perímetro no entorno que fará parte do tombamento.

Em nota, a prefeitura confirmou os tombamentos, no último dia 4 de setembro, de aproximadamente 40 imóveis e áreas envoltórias das vilas Raphael Parente, Belém, Maria Parente Migliari, Pari, e dos sobrados remanescentes da vila João Migliari.

"O restante da quadra [da vila João Migliari] passa a ser área envoltória, com parte devendo ter diretrizes específicas de altura máxima e recuos, e outra com diretrizes para recuos e fachadas", disse a nota da prefeitura.

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