Comunidade resgata tradição do jongo e valoriza ancestralidade a partir da 'casa-grande'

Em caso pioneiro, patrimônio imaterial preserva patrimônio físico não tombado na região de Campinas, em SP

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São Paulo

Campinas, no interior de São Paulo, é considerada por historiadores a última cidade do Brasil a abolir, na prática, a escravização da população negra. A cidade que tinha fama de ser uma das mais cruéis com aquela população subjugada busca, atualmente, resgatar a história e a cultura do povo negro.

Uma dessas iniciativas é o jongo Dito Ribeiro, que há 21 anos foi retomado, virou um agregador da população negra e fez revolução a partir da ocupação da sede da antiga Fazenda Roseira, que séculos antes era território escravocrata.

O jongo é uma dança, uma prática cultural de influência dos escravizados do tronco linguístico bantu e que está muito associada ao plantio de café. Era uma forma que os escravizados tinham para articular fugas, ritmar o trabalho, enganar o senhor, curar alguém que tinha apanhado, às vezes para fazer algumas orações. Surge no Brasil nas fazendas de todos os estados do Sudeste.

Roda de jongo na Fazenda Roseira - Divulgação/Comunidade Jongo Dito Ribeiro

O jongo Dito Ribeiro ressurgiu em Campinas em 2002, a partir de um reencontro de Alessandra Ribeiro, 47, mãe de santo, historiadora e doutora em urbanismo, com sua ancestralidade. Ela foi em uma casa de cultura, assistiu a uma roda de jongo e teve uma reação emocional.

"Fiquei arrepiada, com um nó na garganta e não parava de chorar, queria entender o que era aquilo."

Ribeiro conta que passou a sentir uma presença diária em sua cama e que ficava cantando.

"Não entendia o que era aquilo. No terreiro orientaram a fazer uma roda de jongo para ver se aquilo cessava já que foi numa roda de jongo que começou", diz.

Ela fez uma roda de jongo no quintal da casa da mãe em julho de 2002, no bairro Roseira, já um desmembramento da fazenda, e teve uma revelação. Um tio materno contou que o avô, Benedito Ribeiro, fazia aquilo em Campinas.

"Meu avô nasceu em Minas, em 1930 ele conheceu minha avó em São Paulo, se casaram e vieram morar em Campinas. Meu avô morreu em 1968, com 64 anos, e eu nasci em 1976. Não o conheci, mas descobri que na casa em que eu nasci acontecia o jongo", diz.

Roda de jongo e todas as atividades na Fazenda Roseira são abertas ao público - Divulgação/Comunidade Jongo Dito Ribeiro

Ano a ano, os encontros do jongo em julho foram crescendo, a ponto de reunir de 3.000 a 5.000 pessoas.

No ano de 2007, a Fazenda Roseira foi loteada. Como contrapartida, a sede foi destinada à Prefeitura de Campinas como equipamento público.

"Mas, entre julho de 2007 e agosto de 2008, a gente percebeu que começou a ter depredação. O galpão começou a ser destruído, a casinha que tinha aqui foi derrubada, começaram a vir aqui levar embora madeiras, telhas e outras coisas de valor. A gente denunciava, mas nada acontecia", relembra.

A comunidade Jongo Dito Ribeiro começa a ocupar a fazenda em 2008 para evitar a destruição, ao mesmo tempo em que Ribeiro terminava a faculdade de história, que decidiu cursar para recuperar o legado do jongo no Brasil.

"Porque eu falei, eu não quero só ser objeto do jongo, as pessoas me usam como objeto de pesquisa, mas eu quero participar do debate. E aí eu tinha que ter conhecimento teórico sobre o jongo. Então, meu TCC foi sobre o Jongo. Em 2008, eu estava terminando a faculdade de História e começa a ocupação", diz.

O jongo do Sudeste já era reconhecido nacionalmente desde 2005 pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como patrimônio imaterial. É o primeiro caso de patrimônio imaterial regional conhecido.

Alessandra Ribeiro, que resgatou prática ancestral do jongo na sua família - Divulgação/Alessandra Ribeiro

"Nós somos pioneiros no Brasil de um patrimônio imaterial que defende e preserva um patrimônio material que não é tombado, que é a Fazenda Roseira", explica.

Em 2015, o jongo recebeu a permissão de uso formal da fazenda.

"Foram sete anos de muitas idas e vindas, lutas, choros, lágrimas, sorrisos, medos. Porque a gente chega aqui sem água, sem luz. Zero estrutura. Só barro. A maioria das pessoas que ficavam aqui na luta eram mulheres e eram os nossos corpos que eram a defesa desse lugar. O jongo, então, passa a acontecer aqui dentro", explica.

Atualmente, a Fazenda Roseira abriga o primeiro centro de referência de jongo do estado de São Paulo e realiza atividades de formação de professores, discussão e luta antirracista, visitação de crianças e adolescentes de diversas idades e uma pós-graduação em matriz africana, derivada do doutorado de Ribeiro.

"O que a gente faz aqui é contar a nossa história a partir da casa-grande. Isso é de uma importância que não pode ser só do jongo, tem que ser para a cidadania, para o país, para o mundo. Então, a gente entendeu que aqui ia ser uma casa de cultura, que é gestada por jongueiros, sim, é uma comunidade de jongo, os nossos valores perpassam por isso, mas é um espaço para toda a sociedade", define.

O Fazenda Roseira ainda participa do projeto Tuko Pamoja (Estamos Juntos) em parceria com casas de Cultura da Noruega e Moçambique, que promove o intercâmbio de quatro brasileiros, sendo dois em cada um daqueles países e recebe dois noruegueses e dois moçambicanos para trocas nas mais diversas manifestações das artes, sob coordenação no Brasil do moçambicano Otis Selimane Remane.

"A gente é uma referência da nossa cidade porque a gente junta ancestralidade, cultura, mas a gente junta academia, pesquisa, acho que todos aqueles pontos que foram dizendo que a gente não podia, a gente juntou. A senzala nos foi imposta. Agora é possível funcionar na base do conhecimento e do amor para a construção de uma sociedade mais igualitária", conclui.

Tambores e saias rodadas usadas nas rodas de jongo - Divulgação/Comunidade Jongo Dito Ribeiro
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