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Mineração usa quase 600 bilhões de litros de água por ano sem indicar fonte

Estudo aponta descontrole da gestão hídrica nacional; ANA não responde

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Brasília

O Brasil outorga 578 bilhões de litros de água por ano à mineração sem nenhuma indicação do aquífero de origem, o que aponta para um descontrole do uso das bacias hidrográficas do país. A conclusão é de um estudo da ONG Fase (Solidariedade e Educação).

Esse descontrole se dá, especialmente, no âmbito dos processos sob responsabilidade estadual.

A outorga para uso de água pode ser dada pela União (para os casos de rios que passam por mais de uma unidade da federação) ou pelos estados (quando o processo envolve rios menores ou águas subterrâneas).

Vista aérea do rio Negro, no Amazonas, durante seca histórica no estado - Bruno Kelly - 7.out.2023/Reuters

As informações referentes à vazão de água, uso e origem são autodeclaradas e a renovação da permissão, automática.

A exemplo do que acontece no licenciamento ambiental, os instrumentos de controle da União são mais rígidos e sistematizados —ainda que, como pontua o estudo, com diversas falhas—, ao passo que os órgãos estaduais sequer apresentam padronização em seus procedimentos.

"O Brasil é o país com mais água do mundo, tem uma riqueza hídrica ímpar, mas o estudo alerta que essa fartura está ameaçada", diz Maiana Maia, organizadora do levantamento.

O levantamento da Fase sobre as outorgas para a mineração identificou que 71% da vazão das águas subterrâneas para o setor não apresenta informação sobre o aquífero de origem, ou seja, de onde é retirada a água usada.

"Há, portanto, um aparente e significativo desconhecimento dos órgãos estaduais de onde saem 578 bilhões de litros de água por ano", diz o estudo.

"É uma falha enorme, escandalosa", diz Maia, lembrando que são cada vez mais comuns as crises hídricas em diversos pontos do país, como no oeste da Bahia, no Rio São Francisco, e na Amazônia —que passa por uma histórica seca.

"A gestão pública das águas começa desse lugar da omissão e do favorecimento com a confiança nesses setores, pela autodeclaração da quantidade de águas que eles consomem", diz. "Temos que colocar o Estado como um dos atores nessa dinâmica de secas", completa.

O estudo também mostra que a enorme maioria das outorgas dadas à mineração são feitas em nível estadual, o que é classificado como algo problemático.

"Os estados possuem menor capacidade de gestão e fiscalização do uso das águas, além de estarem mais expostos aos interesses econômicos e suas chantagens", diz o documento, que será lançado oficialmente nesta terça-feira (7).

De acordo com a análise, esses dados são enviados dos estados para um sistema nacional, gerido pela União, sem que essas falhas sejam identificadas ou combatidas.

"Nossa preocupante hipótese é a de que o Estado não possui sistema técnico e informacional capaz de aferir com precisão o real patamar do consumo de águas em território nacional. Sem essa informação, tampouco há capacidade na atual gestão pública para concluir de forma segura sobre a real disponibilidade hídrica que oriente critérios de responsabilidade socioambiental nos procedimentos de outorgas de água a empreendimentos hidrointensivos", completa.

Procurada, a ANA (Agência Nacional de Águas) não respondeu.

Agropecuária

A maior parte das outorgas de água no Brasil é concedida à agropecuária. Dentro do setor, o estudo fez o recorte sobre o uso especificado como destinado à irrigação, o mais utilizado e que consome 247 quintilhões de litros de água por hora, segundo o levantamento da Fase.

Isso equivale, de acordo com o estudo, a 99 trilhões de piscinas olímpicas por hora ou, considerando os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 174 bilhões de vezes o que é consumido por toda a população brasileira.

O estudo não se debruça tanto sobre o agro, mas aponta ainda que, a exemplo do que acontece com a mineração, para a irrigação, quando consideradas apenas as dez maiores outorgas concedidas do país, já são identificados 33,9 bilhões de litros de água sem identificação de corpo hídrico.

De maneira geral, o estudo afirma que, atualmente, há um descontrole sobre o uso da água no país, que acaba por favorecer os grandes setores da economia, uma vez que há uma série de falhas nas informações.

A Fase lembra que todos os dados de outorga são autodeclarados, ou seja, é a própria empresa a responsável por inseri-los no sistema, e não há método de checagem das informações.

Ainda, aponta que a renovação das autorizações é automática, exigindo apenas que os dados declarados mostrem qualquer tipo de vazão de água anualmente.

"O cenário é grave, já que as outorgas concedidas pelos estados respondem por 92,4% das concedidas no país", pontua o estudo, considerando todos os setores.

Para Maia, esse descontrole favorece o uso do bem público sem a devida fiscalização. "Estamos falando da privatização das fontes de água", completa.

Após a publicação da reportagem, o Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração) emitiu uma nota questionando os valores apresentados no estudo.

"Em formulários específicos para a solicitação de outorga de captação de águas subterrâneas, é necessário informar as coordenadas geográficas e os dados geológicos do poço tubular a ser construído para a captação de água. A partir de tais informações, a bacia hidrográfica e o aquífero subjacente são facilmente identificados por profissionais qualificados e habilitados", afirma o instituto.

"Não há, portanto, como existir uma outorga regularizada sem que o órgão gestor tenha conhecimento do ponto onde é feita a captação", completa.

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