Descrição de chapéu DeltaFolha Política da Seca

Emenda parlamentar amplia abismo no acesso a água com abandono e desperdício

Cidades mais necessitadas são ignoradas, enquanto redutos de políticos são abastecidos

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Agricultor Moacir Vieira Ramos pega água em rio quase seco na cidade de Água Branca, em Alagoas Eduardo Knapp/Folhapress

Alagoas, Bahia, Pernambuco, Piauí e São Paulo

Logo que ouve barulho de chuva no telhado de sua casa de taipa, no sertão de Alagoas, o agricultor Moacir Vieira Gomes, 53, corre para o quintal e espalha vasilhas dos mais diversos tamanhos para captar um pouco de água. A correria é para amenizar a falta que faz uma caixa-d’água ou uma cisterna em sua propriedade.

Enquanto isso, no interior da Bahia, centenas de reservatórios estão estocados em um galpão da Prefeitura de Campo Formoso, onde há casos de poços perfurados em terrenos privados e até de caixa-d’água com logotipo do governo vendida em anúncios online.

Um padrinho político faz a diferença. O contraste entre as áreas ignoradas e as abastadas em equipamentos de convivência com a seca é um efeito direto do avanço das emendas parlamentares, que empoderam o Congresso com envio de recursos para áreas indicadas por deputados e senadores, e não necessariamente em regiões de maior necessidade.

Ana Maria Domingos da Silva no quintal de casa, em Mata Grande: dinheiro da água afeta alimentação
Ana Maria Domingos da Silva no quintal de casa, em Mata Grande: dinheiro da água afeta alimentação - Eduardo Knapp/Folhapress

A Folha percorreu cinco estados do Nordeste e flagrou efeitos dessa distorção, com moradores ignorados pelas emendas e pelas estatais tendo de fazer longas caminhadas diárias até um açude ou rio ou a situação de ter de escolher entre a compra de comida e um garrafão de água.

As serras que cortam o município de Mata Grande (AL), onde mora a agricultora Ana Maria Domingos da Silva, 56, são um exemplo disso.

Na região em que está a sua pequena propriedade, quem aguenta anda até duas horas por dia até a fonte para trazer água em um jegue. Quem não consegue, como ela, acaba pagando a outros moradores para transportarem de carroça.

"Já deixei muitas vezes de fazer uma feira, comprar comida, para comprar água. Porque ninguém vem se a pessoa diz: ‘oi, vem botar uma carrada de água e depois eu pago’", diz Ana Maria, sobre a despesa de cerca de R$ 100 por mês.

A agricultora recentemente foi conferir cisternas em casas próximas, feitas por uma ONG, e se pôs a sonhar. "Ficaram bem pintadinhas. Seria uma sorte de Deus se eu recebesse a minha", diz.

O dinheiro extra ajudaria a comprar uma televisão nova. Há anos sem o aparelho, ela se deita às 18h todos os dias imaginando se a água vai durar até o fim do mês.

A decisão de quem vai ganhar uma cisterna ou caixa-d’água tem como elemento central a definição do destino das emendas parlamentares, turbinadas nos últimos anos. O total de recursos empenhados com emendas saltou de R$ 13,9 bilhões, em 2019, para R$ 26,3 bilhões, entre janeiro e setembro de 2023.

A falta de critério e de planejamento que marca esses gastos vem acompanhada do loteamento de estatais em troca de apoio ao governo no Congresso.

Tanto a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) como o Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) foram entregues pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao centrão e são mantidos dessa forma pelo presidente Lula (PT), dentro da política conhecida como "tomá lá dá cá".

A Codevasf, por exemplo, é presidida por Marcelo Andrade Moreira Pinto, nomeado ainda na gestão Bolsonaro sob indicação do centrão. Nada mudou desde então na estatal que se transformou em uma atendente quase que exclusiva de deputados e senadores.

Ali, o mecanismo das emendas se dá da seguinte forma: o parlamentar tem direito a determinado valor para gastar todos os anos. No caso da Codevasf, ele escolhe produtos ou serviços em um catálogo parecido com o de lojas, procura a estatal e indica o município a ser atendido. A empresa pública faz a compra e a entrega. É assim no caso dos reservatórios.

Levantamento da Folha mostra que a distribuição de reservatórios por meio de emendas ignorou locais listados como de alta prioridade e beneficiou áreas menos necessitadas.

No ano eleitoral de 2022, de acordo com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação, somente 10% das unidades de reservatórios pela Codevasf não foram feitas via emendas, ou seja, foram distribuídas diretamente sob definição do governo.

Já o programa federal de cisternas passou de 149 mil equipamentos instalados em 2014 para 5.946 no ano passado –cada equipamento custa em média R$ 6.000.

As cisternas são reservatórios com sistema de captação das chuvas por meio de calhas em geral nos tetos das casas, que garantem suprimento às famílias durante a seca.

A ASA (Articulação Semiárido Brasileiro), rede da sociedade civil, defende políticas de convivência com o semiárido, em vez de somente medidas pontuais de combate à seca. Segundo Naidison de Quintella Baptista, membro da ASA, uma das prioridades deve ser a construção de cisternas de alvenaria de 16 mil litros, o suficiente para que famílias de quatro pessoas tenham água para beber e cozinhar por até dez meses.

Já as caixas-d’água, que em geral têm capacidade de armazenamento menor, muitas vezes exigem carros-pipa, sujeitos ao uso para compra de votos pelos políticos. Nas cidades em situação mais grave, o Exército também mantém operações de envio de água, que, diferentemente das demais, escapam do direcionamento político.

A Embrapa Territorial, com base em variáveis sociais e naturais, elaborou um estudo que aponta 61 municípios prioritários para instalação de cisternas e outras tecnologias de acesso à água. Cruzamento feito pela reportagem com dados de Codevasf mostra como 97% deles foram abandonados na distribuição de reservatórios —adicionando municípios com prioridade alta e muito alta, são 201 (88%).

A alagoana Água Branca, onde mora o agricultor Moacir, entra nesta lista. Ele mora em um lote de assentamento da reforma agrária, em um cenário desértico onde mais de 20 famílias dividem apenas uma cisterna.

"Se tivesse uma cisterna [em casa], eu estava rico. Eu estava feito com água, né? Tinha água o ano todo, mesmo que o governo não colocasse água para mim, durava o ano todo praticamente", diz Moacir.

Na falta do reservatório, ele costuma apelar para um rio onde, na época de seca, é preciso cavar para garimpar um pouco de água. Um trajeto de cerca de 1 km que é repetido várias vezes ao dia.

Sob instalação direta da Codevasf, de 2021 e 2023, foram implantadas 3.518 cisternas, sendo que 1.860 delas, o que equivalente a 53% do total, foram para a Bahia, estado do deputado Elmar Nascimento (União Brasil), líder do centrão que apadrinhou a indicação do presidente da Codevasf.

A cidade que mais teve cisternas instaladas pela estatal foi a baiana Tanhaçu, um total de 213.

Já Alagoas e Pernambuco, com a maioria das cidades prioritárias, não foram atendidos. Os estados também não foram beneficiados por equipamentos do Dnocs, outro órgão que faz esse tipo de serviço.

O Dnocs informou ter entregue mais de 100 mil reservatórios na Bahia de 2019 a 2023, 98% do total. O estado também concentrou 98% dos mais de 123 mil reservatórios distribuídos no ano passado pela Codevasf –nesse caso, inclui desde caixas-d’água menores até outras de 10 mil litros, que posteriormente podem (ou não) ganhar um sistema de calhas.

Em Feira da Mata (BA), por exemplo, 2.147 de seus 5.631 habitantes receberam caixas-d’água em 2022, segundo dados da companhia. A cidade, no estudo da Embrapa Territorial, aparece como de prioridade muito baixa.

O abismo, por vezes, separa cidades que estão lado a lado, caso de Santa Filomena (PE) e Betânia do Piauí (PI), ambas em situação de alta prioridade. A primeira ganhou do governo federal um lote com 2.333 caixas-d’água, o suficiente para atender 77% das famílias. A segunda, que não possui água encanada nem sequer na zona urbana, nada recebeu.

Enquanto isso, a reportagem flagrou parte dos equipamentos enviados a Santa Filomena apodrecendo em terreno da cidade.

Relatórios da CGU (Controladoria Geral da União) mostram o desperdício de equipamentos e falta de critérios. Um deles, por exemplo, aponta o "sumiço" de 15 mil reservatórios devido à falta de comprovação de entrega.

A reportagem também obteve relatos de venda de equipamentos do tipo e encontrou um deles, com logotipo de órgão federal, à venda na internet por R$ 400.

Outro lado: Estatal diz que destinação maior para a Bahia é 'compatível' com a relevância do estado

A Codevasf afirmou que "a eventual destinação de maior quantidade de bens para a Bahia é compatível com a configuração do estado e com a estrutura local da Codevasf".

A estatal cita que o estado é o maior e mais populoso da região Nordeste; conta com duas superintendências da estatal; tem o maior número de deputados federais do Nordeste e é beneficiário, portanto, de mais recursos de emendas do que outros estados.

Segundo a companhia, suas doações são realizadas após avaliação técnica, legal e de conveniência socioeconômica.

A companhia afirmou que as cisternas instaladas diretamente com recursos do orçamento discricionário vão prioritariamente a cidades atendidas pela operação carro-pipa.

O Dnocs afirmou que a entrega de cisternas e reservatórios "é realizada por meio de emendas parlamentares, que são destinadas ao estado e município solicitado pelo parlamentar responsável pela emenda, sem interferência do governo federal".

O Ministério do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social informou que investirá neste ano R$ 562 milhões no programa de cisternas, beneficiando 60 mil famílias.

As presidências da Câmara dos Deputados e do Senado não se manifestaram.

Glossário

  • Emendas parlamentares

    Indicações orçamentárias feitas por deputados e senadores para enviar dinheiro público para suas bases eleitorais para financiar obras, projetos e a aquisição de produtos, com o objetivo de ganhar capital político

  • Codevasf

    Estatal criada na década de 1970 para implantar projetos de irrigação no semiárido brasileiro, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba nos últimos passou a investir mais em obras de pavimentação e entrega de máquinas, veículos e equipamentos financiados por emendas parlamentares

  • Dnocs

    Autarquia federal, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas é vinculado ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional, criada para implantação de projetos hídricos

  • Embrapa

    Criada em 1973 para desenvolver projetos de agricultura e pecuária, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária é uma empresa pública, vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária

  • Cisterna

    Reservatório de água geralmente instalado ao nível do solo ou enterrado

  • Cisterna de placas

    Cisterna de alvenaria feita com placas de cimento, em geral produzida no próprio local onde o reservatório será colocado

  • Caixa-dágua

    Reservatório de água geralmente instalado em local elevado

  • Programa Cisternas

    Projeto do governo federal iniciado em 2003 para construção de cisternas

  • Carro-pipa

    Caminhão com tanque que, em geral, transporta água

Colaboraram Augusto Conconi e Nicholas Pretto

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