Descrição de chapéu Obituário Damiana Cavanha (1942 - 2023)

Mortes: Foi o símbolo da luta pela terra dos povos guarani-kaiowás

Xamã Damiana Cavanha e seu povo foram expulsos por fazendeiros nos anos 1980, em Mato Grosso do Sul

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Aline Crespe

É antropóloga, historiadora e professora da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados)

Lauriene Seraguza

É antropóloga e professora da UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados)

Damiana Cavanha, ñandesy (xamã) e liderança referência na luta pela terra entre os guarani-kaiowás em Mato Grosso do Sul, nasceu na tekoha (território tradicional) Apyka’i, localizada no município de Dourados, na década de 1940.

Contava que sua família conseguiu viver em Apyka’i até por volta dos anos de 1980, quando foram expulsos pelos fazendeiros e se espalharam nas reservas indígenas de Dourados e Caarapó, ambas localizadas no sul de Mato Grosso do Sul. Após a expulsão, Damiana teve sua parentela, que vivia junto na tekoha, fragmentada, e precisou sair em busca de refúgio em diferentes reservas indígenas.

As reservas foram criadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) no início do século 20 com o objetivo de liberar as terras indígenas para exploração econômica, reduzindo a população indígena a pequenos espaços. Damiana conseguiu retornar a Apyka’i em meados de 1990, quando tentou, pela primeira vez, entrar na tekoha novamente, com o objetivo de voltar a viver nela. Mas foram expulsos e desde então tentaram, repetidas vezes, viver no território, sendo despejados em todas elas.

Damiana Cavanha (1942 - 2023)
Damiana Cavanha (1942 - 2023) - Lucas Landau

O último despejo vivido por Damiana foi em 2016. Foi também o mais dramático porque, entre outras coisas, a obrigou a viver os últimos anos de sua vida nas margens da BR 463, sem poder entrar na tekoha, nem mesmo para visitar os parentes que enterrou nas últimas três décadas de luta pelo território.

Foram enterrados por ela em Apyka’i oito parentes vítimas de atropelamento, incluindo seu marido, Ilário Ascário, morto em 2002, além de filho e neto. Enfrentou três casos de suicídio, resultado de processos de sofrimento extremo ocasionado pelo cenário de guerra em que vivem os guarani-kaiowá em Mato Grosso do Sul. E enterrou uma anciã vítima de veneno borrifado por aviões agrícolas e/ou consumido nas águas, uma ameaça constante para as famílias de Apyka’i e das demais terras indígenas no estado.

Em cada uma dessas mortes fica evidente os efeitos letais da expropriação do território e a inoperância do Estado na demarcação dos territórios guarani-kaiowá.

A xamã cuidou, até o fim, de seus parentes enterrados em Apyka’i, que morreram porque se recusaram a abandonar o território onde estão enterradas diferentes gerações de sua família. Impedida de velá-los, Damiana rompia insistentemente as barreiras que lhe impuseram.

Damiana seguiu firme, sem desistir, enfrentando todo tipo de ameaça e violência, sem perder a esperança de ver seu território demarcado.

No dia 7 de novembro ela deixou sua tekoha antes de vê-la demarcada, aos 81 anos de idade. Ela sentiu-se mal em sua casa e foi acompanhada pelos familiares ao hospital da Missão Caiuá em Dourados, onde morreu. As causas da morte são investigadas. Pouco antes de falecer, ela esteve no cemitério de seus antepassados velando seus mortos, à revelia dos proprietários da terra em que se localiza a tekoha Apyka'i. Fazia isso com frequência.

Nos últimos anos, Damiana repetia que, quando morresse, deveria ser enterrada em Apyka’i, lugar onde nasceu e cresceu, mas onde fora impedida de viver.

Dona Damiana ensinou sobre força, coragem e, sempre, sobre esperança. Viverá na memória de filhas e filhos, netas e netos, na memória dos guarani-kaiowá que lutam pelo direito de viver em suas terras e na memória de centenas de pesquisadores, estudantes, jornalistas, ativistas, que ela recebeu generosamente em sua casa, onde puderam aprender um pouco da sua história, da sua sabedoria, assim como do seu luto. Deixou filhas, filhos, netas, netos e um exemplo de luta a ser seguido.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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