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Quase 30 anos depois, Folha encontra herança de disputas territoriais no quilombo Cafundó

Jornal visitou o local pela primeira vez em 1995; moradores convivem com mineradora que faz pagamentos mensais à comunidade

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Capela no quilombo Cafundó, em Salto do Pirapora, no interior de São Paulo Bob Wolfenson

Salto de Pirapora (SP)

A chegada ao quilombo Cafundó, em Salto de Pirapora, no interior de São Paulo, é feita por uma estrada de terra. À primeira vista estão uma capela, um espaço de convivência, uma pousada e casas de alvenaria ou barro. Esses espaços somados, porém, constituem apenas uma pequena parte dos 217 hectares em processo de delimitação.

O cenário é diferente do encontrado pela Folha em 1995, quando havia cerca de 20 barracões e casebres de tijolo que ocupavam 8 dos 90 hectares que faziam parte do quilombo na época.

A maior área do território atual, conhecida como Gleba D ou Fazenda Eureka, é marcada pela zona de mata. A região guarda uma plantação de eucalipto, a história de disputas judiciais pela posse da terra e uma mineradora, que explora areia no local.

O valor pago pela mineradora Ouro Branco à Associação Remanescente do Quilombo do Cafundó é o que garante a sobrevivência do local, que tem mais de 30 famílias. Eles recebem R$ 30 mil mensais.

Moradores do quilombo Cafundó dependem de renda gerada por mineradora, além do plantio de vegetais, vendidos para programas governamentais - Bob Wolfenson

"O contrato com a mineradora é o que fez a comunidade avançar", diz Marcos Norberto de Almeida, 63, coordenador do quilombo.

"Esse negócio de política para quilombo está muito travado, tem muitas pessoas contra ainda. [Por causa da] divergência política entre eles, até chegar na ponta, demora muito", diz.

A comunidade é formada por quatro partes chamadas de glebas, em fases distintas de regularização, mas sob posse do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). A área total, porém, já foi concedida à comunidade por meio de contrato de concessão de direito real de uso coletivo.

Para se manter, além do valor recebido da mineradora, os moradores utilizam as terras para o plantio de vegetais, vendidos ao Estado por meio de programas de fomento a produtores.

"O que avançou foi mesmo com o apoio deles [mineradora], porque coisa de governo [não ajuda]", afirma o líder da comunidade. "É com isso que nós vamos nos mantendo. Compramos máquinas, implementos, insumos, sementes."

Há três décadas, a disputa territorial parecia tema distante. Na época a preservação da língua falada no local, a cupópia, até então vista como exclusiva, era ponto importante. Dona Cida, então liderança da época, dizia que era falada "na frente dos brancos", quando não queriam que eles entendessem. "E ensina as crianças, assim não acaba nunca", disse ela à reportagem em 1995.

Com o passar do tempo, a língua foi descoberta como uma variação do português regional com um léxico reduzido de banto, de origem africana. Hoje, é conhecida apenas pelos mais velhos –as crianças já não aprendem mais. O racismo que elas sofrem fora do quilombo, diz Almeida, faz com que não queiram estudar o idioma.

Os problemas de antes são semelhantes aos encontrados hoje, mas com algum avanço. Na época, Cida dizia que as questões se resumiam à falta de médicos, escolas e esgoto. O saneamento básico chegou, e as crianças vão até a região central do município assistir às aulas. Mas o atendimento à saúde ainda não é suficiente, segundo o líder comunitário, embora melhor do que antes.

Um dos principais desafios, diz, é encontrar formas para a manutenção da comunidade. Nesse sentido, o valor recebido pela exploração de areia supre as maiores necessidades.

A gleba na qual estão a empresa e a plantação de eucalipto possui 122 hectares, onde a mineradora ocupa uma área de 18 hectares.

Embora parte da comunidade esteja satisfeita com a parceria, o passivo ambiental deixado pela exploração de areia inclui terras inférteis e contaminação de nascentes, de acordo com o geógrafo Lucas Bento, que se dedicou a estudar o território de Cafundó e os resultados da mineração em doutorado na UFG (Universidade Federal de Goiás).

Capa da Revista da Folha de 14 de maio de 1995 - Reprodução

Mesmo com medidas de recuperação do solo e dos mananciais, afirma à Folha, a área se tornará inutilizável. "Assim, vale ressaltar que os efeitos nas territorialidades dos quilombolas do Cafundó, são irreversíveis ambientalmente e culturalmente, em virtude da contaminação dos solos e nascentes, devido aos resíduos depositados por conta das práticas da mineração."

A reportagem procurou a mineradora Ouro Branco para questionar quais precauções são tomadas para evitar danos ambientais e quais os planos para recuperação da área, mas a empresa não respondeu às tentativas de contato por email e telefone até a publicação deste texto.

A exploração no local foi autorizada pela primeira vez em 1998, antecedendo o início do processo de regularização do território quilombola. A presença da comunidade na região, entretanto, é anterior. Localizada na área rural da cidade de Salto de Pirapora, Cafundó existe desde o final dos anos 1800 e foi reconhecida em 2005 pela Fundação Cultural Palmares.

A empresa garantiu o direito de explorar minério no local por meio de um contrato de arrendamento rural feito com o antigo proprietário, que recebeu a propriedade por usucapião em 2009.

No contrato com a mineradora, ele receberia 15% do faturamento total da extração do minério —pagamento que cessou em 2012, quando a Justiça determinou a posse do Incra, que analisa o processo de titulação para ceder o local para os quilombolas.

Mesmo com a mudança de propriedade, a empresa foi mantida a pedido do órgão federal. O instituto queria evitar perdas em decorrência da disputa territorial.

Aos quilombolas ficou a tarefa de fazer um novo acordo com a mineradora. A licença de operação da empresa, concedida pela Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo), porém, acaba em julho de 2024, quando terão de renovar o acordo ou deixar Cafundó.

O espaço usado pela mineradora compreende um balcão de areia que se afunda em um território cercado pela plantação de eucalipto. Os moradores têm interesse na exploração da planta, mas ainda não sabem como farão a extração e a venda das árvores.

Regina Aparecida Pereira, 63, liderança do quilombo e membro da associação, afirma que tanto a mineração como a plantação de eucalipto tornaram o solo improdutivo.

"O que a comunidade tinha no passado de frutas nativas, e até a melhor área de plantio, era a gleba D", diz ela.

Segundo o Incra, a mineradora firmou termo de compromisso de recuperação ambiental junto à Cetesb em 15 de maio de 2000. Em relação à plantação de eucalipto, o órgão afirma que a área está sob responsabilidade da própria comunidade.

Já de acordo com a Cetesb, o empreendimento foi enquadrado como de pequeno porte, com licenciamento conduzido a partir da apresentação do relatório de controle ambiental e do plano de controle ambiental para extração de substâncias minerais.

Nos documentos, ainda segundo o órgão, foram apresentados os impactos ambientais decorrentes da atividade, bem como estabelecidas as medidas de controle a serem implementadas pela empresa.

O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford

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