Descrição de chapéu Milícia no RJ Folha por Folha

Série sobre milícias do RJ teve distribuição de cartões, visita a cemitério clandestino e 137 entrevistas

Maior dificuldade foi pensar na segurança das pessoas que seriam abordadas e na da própria equipe da Folha

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

Após contar sobre o desaparecimento do seu filho, uma dona de casa me pediu para retirar o seu relato de uma reportagem. Segundo a polícia, o jovem foi torturado, morto e teve seu corpo atirado em um rio por milicianos. Os responsáveis nunca foram presos. A mãe disse não acreditar em justiça e temer por sua vida.

O medo que fez uma mãe desistir de procurar os assassinos de um filho é justificado: nas áreas desse grupo ilegal, ninguém sabe ao certo quem pode ser mais um miliciano. A presença está no carro que passa para arrecadar o pagamento da barraca de doces, na expulsão de moradores de suas casas, na ausência dos desaparecidos.

Cerca de 35 ônibus foram incendiados na zona oeste do Rio por conta da morte de um dos líderes da milícia que atua na cidade - Eduardo Anizelli/Folhapress

Nas áreas controladas por esses grupos, ninguém sabe ao certo quem de fato é miliciano. Pode ser o vizinho, o comerciante, até o policial —agentes das forças de segurança participaram da criação dessas organizações nos anos 1990.

O medo difuso paira pelas ruas de mais de 800 áreas da zona oeste do Rio e baixada fluminense.

A Folha percorreu durante dois meses esses locais para mostrar como é a vida nos bairros controlados pelo grupo. O resultado foi a série de reportagens Milícia no RJ.

A maior dificuldade encontrada foi pensar na segurança das pessoas que seriam abordadas nessas regiões —e na da própria reportagem, que poderia tentar entrevistar, sem saber, um miliciano.

Foi a milícia que praticou um dos crimes mais graves contra a imprensa: a tortura de uma equipe de jornalistas em 2008. O fotógrafo Nilton Claudino, uma das vítimas, foi entrevistado na série e afirmou que nunca mais voltou a trabalhar.

A solução que encontrei para garantir a segurança tanto dos entrevistados quanto da equipe foi a impressão de 500 cartões com os meus contatos de telefone, rede social e email. Assim, a entrevista não seria realizada no local, e a abordagem seria rápida. O motorista da Redação, Orlando de Souza, estava sempre com o carro ligado próximo, atento para alguma emergência.

O primeiro que interpelei foi um vendedor de vassouras, na zona oeste. A característica mais marcante de um vassoureiro, como a profissão é chamada no Rio, é sua voz imponente, capaz de burlar qualquer parede residencial anunciando sua presença pelas ruas.

Falando em tom alto os preços das piaçabas e rodos que carregava, ao saber que eu procurava informações sobre a milícia da região, me advertiu com um murmúrio: "fala baixo". Olhou para os lados e pegou o cartão. Continuou andando, sem olhar para trás.

No dia seguinte, entrou em contato e disse que tinha de pagar uma taxa semanal para andar sob o sol, vendendo seus produtos. Além dele, de todos os cartões distribuídos, 93 pessoas me procuraram para falar sobre cobranças que variavam de R$ 10 a R$ 500, de acordo com o porte do comércio.

No total, foram 137 pessoas entrevistadas durante dois meses. As conversas com as vítimas foram realizadas por meio de mensagens, videochamadas e em encontros presenciais distantes do local onde moravam.

Alguns pediram para que seus relatos não fossem publicados, mas disseram acreditar que a imprensa poderia fazer algo para transformar aquela realidade.

Para entrar em locais como a comunidade de Três Pontes, na zona oeste, avaliei que a tática dos cartões poderia ser arriscada, já que a comunidade não tem patrulhamento nas ruas.

Assim, escolhi entrar a pé, sem crachá, anotando telefones expostos pelo comércio para entrar em contato posteriormente. Logo na entrada, dois homens puxavam os fios de um poste para o chamado gato de luz. Não havia barricadas ou homens fortemente armados, como nas áreas do tráfico.

Após avançar alguns quarteirões, localizei a casa onde Wellington da Silva Braga, o Ecko. Em 2021, ele era líder da milícia, e foi morto em ação policial ao visitar a namorada nessa residência.

Nos muros da rua, ainda havia marcas de tiros. Ao tocar a campainha, um portão eletrônico abriu e, ninguém apareceu por cerca de três minutos. Notei que a casa tinha câmeras e pensei em ir embora. Mas uma moradora apareceu e afirmou que havia comprado a residência há alguns meses. Um vizinho disse que a família que residia no local na ocasião do tiroteio se mudou após a morte do miliciano.

Delegados e promotores disseram que os relatos ouvidos pela reportagem eram mais volumosos do que o número de pessoas que procuravam a polícia. Um dos policiais procurados não quis me dar entrevista e disse: "às vezes você pode estar falando com um miliciano e não sabe".

Já policiais que deram entrevista contaram que após os registros policiais, algumas vítimas voltavam atrás e não apareciam mais nas delegacias ou na Justiça.

Foi o caso de um empresário que vendia o gelo para quiosques de praias. Agora, segundo sua versão, após ser obrigado a vender seu comércio por um preço bem menor aos criminosos, diz que até a caipirinha que refresca os banhistas nas areias dá dinheiro aos milicianos.

Assim, a milícia demonstra que seus tentáculos vão muito além das áreas que dominam, o que mostra um controle territorial diferente do exercido pelos traficantes. O tráfico tem controle somente nas ruas de uma determinada favela, apontam investigações.

A reportagem teve acesso a casos sigilosos, de pessoas que não desistiram de se livrar do domínio de milicianos, como o de moradores expulsos de suas residências pelos criminosos.

Com o repórter fotográfico Eduardo Anizelli, entrei em um matagal na Baixada Fluminense para encontrar um local apontado como cemitério clandestino, além de ir até uma comunidade de pescadores que teve que mudar sua rotina depois da queda de uma ponte próxima. Ela foi derrubada por milicianos que tentaram levar as toneladas de ferro para construir imóveis, segundo a polícia.

Também foram ouvidos relatos de viúvas de milicianos, que contaram como ficaram sem qualquer apoio após as mortes dos maridos.

Um dos momentos mais tensos da série foi a entrevista com um homem que fora condenado por praticar crimes para a milícia. Ele simulou uma tortura na mão da repórter. Em suas palavras, somente se arrependeu de não ter ficado mais rico.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.