Descrição de chapéu indígenas violência

Indígena de área remota é levado com mulher grávida a Manaus, desaparece e é encontrado morto

Polícia registra homicídio de madiha kulina, cujo povo é de recente contato e vem enfrentando abandono no médio Juruá; MPF investiga omissão

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Manaus

Tadeo Kulina, 33, deixou sua aldeia e cruzou o Amazonas, numa UTI aérea, para acompanhar a mulher, que vivia um momento delicado da gravidez.

A comunidade dos madihas kulinas está numa área de difícil acesso na Amazônia, já perto do Acre, ao sul do Vale do Javari (AM). É um povo de recente contato, que vive da caça, da pesca e da roça. O destino do casal foi Manaus.

Corpo de Tadeo Kulina é transportado de volta a aldeia na Terra Indígena Kulina do Médio Juruá, no oeste do Amazonas
Corpo de Tadeo Kulina é transportado de volta a aldeia na Terra Indígena Kulina do Médio Juruá, no oeste do Amazonas - Entidades indígenas

Após horas de voo, no dia 1º, Tadeo e a mulher chegaram à Maternidade Ana Braga, na zona leste da cidade. O parto foi feito, o bebê nasceu, e a mãe e a criança se recuperaram bem nos dias seguintes, após os riscos que correram.

Tadeo, que falava pouco a língua portuguesa, desapareceu do hospital no dia 7. Foi encontrado dias depois, morto, com sinais de espancamento na cabeça, no IML (Instituto Médico Legal).

O corpo retornou à Terra Indígena Kulina do Médio Juruá, num voo de volta. No mesmo avião, com o caixão, estavam a mulher e o bebê recém-nascido.

O homicídio do madiha kulina –é assim que o boletim de ocorrência na Polícia Civil do Amazonas registra o episódio, como homicídio simples– é um caso com muitas perguntas sobre o que de fato ocorreu, do desaparecimento à morte.

Há sinais de descaso e omissão em relação ao casal e mais uma evidência do tratamento dispensado a esses indígenas nos núcleos urbanos, tanto nas cidades próximas das terras indígenas –como Envira, Eirunepé e Ipixuna– quanto na capital.

Caixão com corpo de Tadeo Kulina é transportado até aldeia, junto com mulher e familiar indígenas
Caixão com corpo de Tadeo Kulina é transportado até aldeia, junto com mulher e familiar indígenas - Entidades Indígenas

A Folha questionou a Polícia Civil e a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas sobre a condução das investigações sobre a morte de Tadeo. Nenhum dos órgãos respondeu.

O MPF (Ministério Público Federal) no estado abriu um procedimento preliminar de investigação, na esfera cível, para apurar eventual omissão por parte da área de saúde indígena.

Deslocamentos e acompanhamentos do tipo, especialmente de indígenas de recente contato, são uma responsabilidade do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena), vinculado ao Ministério da Saúde.

A região do médio rio Juruá, onde estão os madihas kulinas e onde vivia Tadeo, é atendida pelo DSEI Médio Rio Solimões e Afluentes. Em Manaus, há uma Casai (Casa de Saúde Indígena) para o acolhimento de indígenas que precisam se deslocar à capital para tratamento médico. A Casai também integra a estrutura do SUS para atendimento em saúde indígena.

Segundo a Procuradoria da República no Amazonas, já foram feitas as primeiras diligências, com pedidos de informações aos órgãos de saúde que atenderam os indígenas. Também haverá depoimentos.

A investigação criminal sobre a morte de Tadeo será conduzida pelo Ministério Público estadual, não pelo MPF. O Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Em meio ao silêncio da área de segurança do governo do Amazonas e à infinidade de dúvidas entre indígenas, entidades e instituições que acompanham o caso, a reportagem conseguiu apurar detalhes do que pode ter ocorrido na maternidade e nos dias seguintes, com base em relatos de testemunhas ouvidas sob a condição de anonimato.

Tadeo e a mulher chegaram no dia 1º à maternidade. No dia seguinte, houve visita de equipe de saúde do DSEI, sem acesso aos dois, pois a mulher havia acabado de passar pelo procedimento cirúrgico para o parto.

No dia 5, a maternidade comunicou ao DSEI que era necessário providenciar a certidão de nascimento, o que não vinha sendo possível porque os pais não conseguiam assinar os nomes, conforme os relatos colhidos pela reportagem. Houve, então, uma nova visita de equipe do DSEI, no dia 6.

No serviço social da maternidade, profissionais de saúde teriam ouvido o relato de que Tadeo queria "fugir com a criança". Ele também teria relatado "visões" e "perseguição". "Tem um policial que quer me prender, me matar", teria dito o madiha kulina. As falas eram pronunciadas com calma e sem agressividade, conforme os profissionais.

Quem conhecia Tadeo nas comunidades diz que ele não tinha problemas psicológicos.

O desaparecimento teria sido constatado no dia 7. Funcionários da maternidade pediram que a saúde indígena providenciasse um acompanhante para a mulher, pois Tadeo teria saído e não regressado.

No dia 7, houve o registro de um boletim de ocorrência por desaparecimento, num distrito de polícia em Manaus. A Maternidade Ana Braga aparece como "local do fato".

A busca por Tadeo prosseguiu pelo Carnaval, até a localização e identificação do corpo no IML por uma profissional de saúde indígena. Havia evidências de agressão na cabeça e hematomas, equivalentes a material contundente como um pedaço de madeira, segundo os relatos feitos.

O indígena teria ingressado num hospital no mesmo bairro da maternidade, onde teria ocorrido o óbito. O corpo, então, foi encaminhado ao IML.

O boletim de ocorrência da morte, feito na Delegacia de Homicídios em Manaus, não traz detalhes do que ocorreu. O dia do fato informado é 7 de fevereiro. O registro foi feito no dia 16.

Na região do médio Juruá, distante 1.200 km de Manaus, a realidade dos madihas kulinas é de violência e abandono, com multiplicação de relatos de mortes , suicídios e exploração a partir da retenção de cartões de benefícios sociais. Esta realidade foi denunciada, em 11 de maio de 2023, ao escritório da ONU para prevenção de genocídio.

Relatórios e fotos registram um quadro de desnutrição infantil, insegurança alimentar, alcoolismo e estupro entre indígenas.

Após a Folha mostrar o conteúdo dos relatórios, em reportagem publicada em setembro de 2023, o Ministério dos Povos Indígenas anunciou a criação de um grupo para tratar do assunto. Meses depois, o governo não agiu e os problemas persistem, segundo o MPF.

Na aldeia onde Tadeo vivia, e nas aldeias vizinhas, os indígenas estão consternados e temerosos de buscar Manaus para tratamentos de saúde em casos complexos. Esse fluxo ocorre com frequência, mais de uma vez ao mês.

Lideranças de organizações indígenas –como a Organização dos Povos Indígenas da Calha do Juruá e o Cimi (Conselho Indigenista Missionário)– acompanham o caso. Na terra Kulina do Médio Juruá vivem 2.400 indígenas.

Os madihas kulinas estão em dez terras indígenas, especialmente no médio Juruá (AM) e no alto rio Purus (AC). Eles também estão no Peru. As informações são do banco de dados elaborado pelo ISA (Instituto Socioambiental), que aponta a presença de 7.200 indígenas nesses territórios no Brasil.

Tadeo faria aniversário em 8 de fevereiro, segundo a data de nascimento informada no boletim de ocorrência do homicídio. A mulher mudou de aldeia diante do desarranjo todo. Ela está triste, deprimida, e quis ficar mais perto do local onde o corpo foi enterrado, segundo as lideranças que acompanham a jovem.

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