Não quero reduzir mulher ao aborto, diz ministra Cida Gonçalves

Chefe da pasta das Mulheres afirma que discussão sobre o procedimento sem debate a respeito de contracepção é irresponsabilidade

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Nova York

"Hoje discutir o aborto só por discutir o aborto é uma irresponsabilidade", afirma Cida Gonçalves, chefe do Ministério das Mulheres e primeira a comandar uma pasta voltada exclusivamente para o gênero no Brasil.

Cida diz não querer reduzir a mulher ao tema e culpa governos anteriores pelas falhas da rede pública na realização do aborto nos casos em que o procedimento é autorizado no Brasil.

A ministra defende a necessidade de discutir todo o planejamento familiar, incluindo métodos contraceptivos. Questionada sobre o fato de médicos se negarem a oferecer o serviço alegando razões religiosas, a chamada objeção de consciência, permitida no Brasil, ela afirma que é necessário um debate público sobre o tema. Admite, porém, que não há uma estratégia pronta.

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, ao lado da primeira-dama Rosângela da Silva, participa de palestra durante viagem em Nova York para evento da ONU - Claudio Kbene/PR

Gonçalves deu entrevista à Folha durante passagem por Nova York, onde participou da 68ª Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher da ONU (Organização das Nações Unidas), realizada de 11 a 15 de março.

A primeira-dama Rosângela da Silva também integrou a comitiva brasileira no evento.

Reportagem recente da Folha trouxe relatos de mulheres denunciando humilhações e falta de acesso ao aborto no SUS, mesmo nos casos em que ele é legal. Essas denúncias não são novas. Por que ainda é tão difícil uma mulher conseguir aborto, mesmo quando ele é autorizado por lei?
Bom, primeiro porque tudo o que já tinha sido construído foi destruído nos últimos seis anos. O que tinha da pouca rede de atendimento, de profissionais que se dispunham a fazer esse trabalho, foi destruído. Hoje ninguém mais quer porque existe um ódio que coloca as pessoas em constrangimento. Você tem que considerar a realidade que o Brasil vive hoje. A Folha sabe disso, a Folha acompanha esses casos permanentemente, então acho que isso é importante dizer.

O segundo é que, na verdade, você tem um processo de reconstrução que não é tão simples e tão rápido. A Folha está acompanhando todo o processo da discussão de uma nota técnica que saiu de uma área e ia para outra e, de repente, foi publicada. Nós temos um país de retrocesso, um país que não aceita discutir planejamento familiar, um país que não aceita discutir pílula do dia seguinte, um país que não aceita fazer propaganda.

O que nós defendemos é que você tenha a contracepção de emergência. Aconteceu o estupro, você vai num posto de saúde para receber a contracepção de emergência. Isso caiu por terra. Então, assim, hoje discutir o aborto só por discutir o aborto é uma irresponsabilidade, eu diria.

Por quê?
Porque você tem que discutir todo o planejamento familiar. A pergunta que você fez foi sobre direitos sexuais e reprodutivos. Eles envolvem discutir a possibilidade de o casal, não é só a mulher, o homem e a mulher, fazer um planejamento familiar, decidir quando ter filhos, a forma e as condições de ter esse filho. Isso significa ter um acompanhamento geral para que isso aconteça.

Mas mesmo nesses casos, vimos recentemente o Hospital São Camilo, que se negou a colocar o DIU [dispositivo intrauterino] alegando uma questão religiosa. Esse ainda é um problema grande no Brasil?
É, nós temos a objeção de consciência no Brasil, a maioria dos casos não são feitos por isso.

A objeção de consciência não deveria existir?
Eu acho que deve ter, mas todos os profissionais têm a objeção de consciência?

Então como lidar com esse problema?
A gente vai ter que lidar fazendo um debate público. E o Brasil tem que estar preparado para isso.

Mas como fazemos esse debate público? Quais são os próximos passos, concretamente?
Isso eu vou avaliar, vou discutir com o Ministério da Saúde. Não tenho isso pronto agora. E não vou te falar sobre isso também.

Além do DIU, que outros métodos contraceptivos a sra. acha que deveriam ser mais ofertados na rede pública?
Camisinha feminina, camisinha masculina, DIU, orientação. Não custa nada fazer uma orientação. Quem é de religião, se não quiser nenhum desses métodos, quiser fazer a prevenção, é um direito do casal e da pessoa o método que se vai utilizar. E o que o Estado tem que fazer é garantir isso.

A senhora vê as escolas como espaço para isso? Foi um grande debate nos últimos anos.
A escola tem que fazer um outro debate. Eu acho que não vamos misturar. Eu não vou discutir, não vou me posicionar sobre isso. Na escola é outro debate.

Qual seria esse outro debate?
Eu acho que na escola a gente tem que discutir violência, igualdade entre homens e mulheres, respeito, não misoginia. Eu não sei se te falaram, mas no Brasil a gente está com um problema nas redes sociais. Nós temos mais de 80 canais com 8 milhões de seguidores, a maioria adolescentes. Esses canais propagam o ódio contra as mulheres.

Mas a educação sexual, a sra. acha que a escola não é um espaço?
Eu acho que na escola você tem que discutir diversas coisas. Pode até ser a questão da educação sexual, pode até ser, mas não sei se é só isso. Eu não quero reduzir a mulher a aborto, educação sexual. A mulher tem direito a trabalhar, a ter um salário digno. Você sabe que no Brasil tem várias empresas, por exemplo, que entraram [com ação] contra a lei da igualdade salarial? Isso é um problema das mulheres também.

Nós recebemos 22% menos que os homens. Nós temos um desafio. Das 33 milhões de pessoas que passam fome, a grande maioria são mulheres, e mulheres negras e mães solo. Então, todos esses desafios estão colocados, e precisam ser discutidos e ser pensados enquanto política pública.

Entendo o ponto da sra., mas acho que ainda é preciso a gente falar mais sobre aborto.
Eu não vou falar. Então a gente vai encerrar a entrevista aqui.

Vou falar então de um ponto do seu discurso na ONU, sobre desinformação e discursos de ódio. Como teremos eleições municipais neste ano, a sra. teme um aumento da violência política contra mulheres?
Eu acho que não vai diminuir, até porque as mulheres já estão com uma coragem, estão animadas. Agora, isso é um risco. Se não tiver uma campanha, se não tiver uma possibilidade de os partidos, porque isso é responsabilidade dos partidos, de repensar suas estratégias e as suas formas, nós podemos de novo não conseguir eleger o número de mulheres no país.

Nós somos um país que tem mil municípios que não têm nenhuma vereadora. Isso é um desafio. Nós temos 12% de prefeitas. Nós precisamos que, fora o debate que está sendo feito pelo governo, pela sociedade, pelo movimento de mulheres, que os partidos também se revejam. Porque é uma estrutura machista e patriarcal.

Está nos planos do ministério fazer algum tipo de campanha voltada especificamente para a eleição?
Nós estamos trabalhando agora, no final do mês, para sair com uma campanha de incentivo às mulheres. Mais mulheres, mais democracia. Porque nós estamos vivendo um momento de fortalecimento da democracia brasileira. As mulheres são 52% da população e precisam, efetivamente, que sejam representadas nas instâncias de poder.

Um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública a pedido da Folha apontou que, no ano passado, foi o recorde de feminicídios desde que o crime foi tipificado no Brasil. Por que esse crime continua crescendo?
Porque estamos vivendo um clima de ódio no país. Se a gente tem intolerância na esquina, com o carro, a gente vai ter intolerância também dentro de casa. O ódio que está na rua, que está nos bares, que está nos jogos de futebol... Esse ódio vai para dentro de casa e ele termina aumentando também o número de feminicídios.

O problema não é só ter aumentado o número, é a crueldade com que tem acontecido esses crimes. Eles matam os filhos e depois matam as mulheres. Isso eu vou colocar na conta dos movimentos dos machosferas, que são esses canais que ficam fazendo durante todos os dias a política, a apologia ao ódio contra as mulheres. E isso termina autorizando que feminicidas matem as mulheres.

A sra. acha que uma estratégia para combater o feminicídio passaria, então, por ter algum tipo de regulação desse tipo de discurso na internet?
Eu acho que não é uma regulação necessariamente, mas nós precisamos estabelecer alguns parâmetros, inclusive para a Meta, para o Google, regular. Eles dizem que têm uma regulação, mas que regulação é essa se continuam existindo [os canais] e continuam fazendo o que estão fazendo? Acho que essa é a grande pergunta a ser feita.

O discurso de ódio está tão similar em todos os lugares, e as grandes empresas, as big techs, não percebem o que está acontecendo. Não percebem, não querem ou perpetuam porque isso dá dinheiro. O problema é que monetiza e eles ganham dinheiro. Então, eles não estão preocupados com a vida das mulheres, estão preocupados em ter recurso.

Em relação ainda ao combate ao feminicídio, quais são os próximos passos do Ministério?
Nós lançamos o Pacto Nacional de Prevenção ao Feminicídio, agora nós estamos com um plano de trabalho, nós vamos ter ações de prevenção nas escolas, na cultura, tudo mais. Nós vamos liberar R$ 10 milhões para a tornozeleira eletrônica, porque é uma forma de prevenir. Nós vamos trabalhar com a perspectiva de aumentar a Patrulha Maria da Penha, porque ela dá conta de chegar, de acompanhar e de monitorar os casos que as mulheres estão em risco de vida.

Para além disso, nós também queremos fazer um debate nacional, e nós estamos fazendo [isso] com a iniciativa Brasil Sem Misoginia, porque além do debate das políticas públicas, da intervenção direta do Estado, nós só vamos acabar com o feminicídio, com a violência contra as mulheres, quando cada pessoa, quando você, quando o leitor da Folha, decidir que vai se meter, dizer que não aceita o ódio contra as mulheres, dizer que não aceita a violência, que não aceita o feminicídio. Só assim nós vamos constranger quem hoje acha que tem autoridade, autonomia e está autorizado a matar.


RAIO-X

Cida Gonçalves, 62

É ministra das Mulheres desde 2023, quando a pasta foi criada pelo governo Lula (PT). Nascida em Clementina (SP), fez sua carreira política em Campo Grande. Nos primeiros mandatos de Lula e no governo Dilma (2003-2016), foi secretária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Militante do PT, participou da fundação da Central dos Movimentos Populares, em 1993, e já integrou a direção estadual e nacional do partido.

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com três meses de assinatura digital grátis

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.