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Quatro mudanças do crime organizado na América Latina que dificultam combate de gangues e facções

O anonimato de líderes criminosos e a diversificação dos negócios ilegais fazem com que o cenário hoje na região seja bem diferente das décadas anteriores

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Fernanda Paúl
BBC News Brasil

A América Latina está passando por uma forte transformação na forma como gangues do crime organizado operam na região.

Isto tem sido observado por várias organizações internacionais e por especialistas consultados pela BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

Homem de cabeça baixa sendo conduzido por 2 policiais
Líder de um grupo criminoso da Colômbia é conduzido por policiais - Getty Images via BBC

A atual composição dos grupos criminosos, o tipo de negócio com que lidam, a amplitude do território que atingem e o anonimato de muitos dos seus líderes são alguns dos fatores por trás dessa transformação.

Esses mudanças aumentam a complexidade do combate às organizações criminosas por parte das autoridades. Muitos países, na verdade, continuam a aplicar soluções do passado, segundo especialistas.

"Hoje vivemos uma mudança muito significativa na América Latina que não víamos desde a queda do cartel de Cali, em meados da década de 1990, que causou um grande rearranjo no mundo do crime", aponta Douglas Farah, consultor que passou mais de três décadas pesquisando questões relacionadas à segurança no continente americano.

Farah e outros especialistas destacam certos episódios que levaram a esta transformação.

Entre eles, está a desmobilização das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em 2016, o que fez proliferar novos atores que passaram a controlar regiões produtoras de coca no país.

Também houve a pandemia de Covid-19, que, segundo Lucía Dammert, professora da Universidade de Santiago do Chile e especialista em criminologia, fez inundar "a América Latina com cocaína de baixo valor porque era mais complexo exportá-la".

"Isso multiplicou as organizações criminosas", diz Dammert à BBC News Mundo.

A seguir apresentamos em tópicos as principais mudanças no crime organizado na região.

1. Fragmentação da estrutura criminal

Para os especialistas entrevistados pela BBC News Mundo, uma das peculiaridades do crime organizado que atinge hoje a América Latina é que ele é formado por uma infinidade de grupos que atuam em alianças enraizadas em diversos países.

Esta fragmentação não era tão comum há cerca de dez anos.

O fenômeno foi destacado pelas Nações Unidas no seu Relatório Mundial sobre a Cocaína 2023, onde se afirma que existe hoje uma "miríade de redes de tráfico".

Referindo-se especificamente à Colômbia, o relatório diz que "como resultado da fragmentação do cenário do crime após a desmobilização das Farc em 2016, há o envolvimento agora de grupos criminosos de todos os tipos, tamanhos, estruturas e objetivos."

Homens com roupas militares, alguns segurando grandes armas
A desmobilização das FARC começou em 2016 - Getty Images via BBC

Jeremy McDermott, codiretor da InSight Crime (instituição especializada em pesquisas sobre crime organizado nas Américas), afirma que "não existem mais cartéis que controlam todos os elos da cadeia de atividades criminosas."

"Agora, todos dependem de outros grupos criminalizados", ressalta.

Com isso, o abastecimento torna-se mais eficiente —e o trabalho da polícia fica mais difícil.

Na verdade, muitas organizações —como o PCC (Primeiro Comando da Capital) do Brasil, ou o Tren de Aragua, da Venezuela— conseguiram expandir os seus tentáculos por toda a região graças a este tipo de "subcontratação criminosa."

"Para nós, o Tren de Aragua não é um grupo que tenha uma hierarquia bem definida, que responda a comandos centralizados. É uma espécie de federação ou sistema de franquias", diz McDermott.

Douglas Farah acrescenta que a fragmentação dos grupos criminosos foi impulsionada, em parte, pela entrada de novos atores internacionais no cenário latino-americano.

"Pela primeira vez, vemos a influência real das máfias albanesas, de grupos de Montenegro ou a presença verificável de máfias italianas, como a 'Ndrangheta", diz ele.

Segundo o relatório das Nações Unidas, estes grupos não pretendem assumir o controle do território, mas sim "estão tentando conectar as linhas de abastecimento".

A entrada de outros grupos criminosos ocorre num momento em que se tem registrado um aumento considerável do tráfico de cocaína da América Latina para a Europa —onde, por sua vez, tem-se verificado aumentos significativos no consumo, especialmente em países como Bélgica, França e Espanha.

"O preço da cocaína nos Estados Unidos estagnou em mais ou menos US$ 15 ou 17 mil por quilo. Na Europa, porém, ultrapassa os US$ 80 mil por quilo e, na Rússia, os US$ 120 mil. Ou seja, existem mercados muito mais valiosos do que os Estados Unidos neste momento para os produtores de coca latino-americanos", explica Douglas Farah.

2. Diversificação dos negócios

É preciso considerar também outra característica dos grupos do crime organizado na região: a enorme diversidade de seus negócios ilegais.

Segundo os analistas, o fato de existir um panorama mais fragmentado significa também que o tipo de negócio que esses grupos desenvolvem é mais amplo.

Mineração ilegal de ouro na Colômbia
Uma mina de ouro ilegal na Colômbia; em janeiro de 2023, ela foi destruída pelas forças de segurança - Getty Images via BBC

"Antes, as estruturas criminosas eram especializadas em uma área do negócio criminoso. Mas, com o tempo e a globalização, elas perceberam que a diversificação dos seus serviços é uma oportunidade que não podem desperdiçar", explica Pablo Zeballos, ex-oficial de inteligência chileno e consultor internacional sobre crime organizado.

O tráfico de seres humanos e de armas, a prostituição, a expansão das drogas sintéticas, a falsificação de medicamentos, os assassinatos de aluguel e a mineração ilegal —que em países como o Peru ou a Colômbia geram lucros iguais ou superiores aos do tráfico de drogas— são alguns dos negócios para os quais diversas organizações criminosas estão caminhando, segundo citaram os entrevistados.

Jeremy McDermott observa que isto é significativo especialmente para grupos que têm "controle territorial".

"É preciso controle territorial para diversificar a carteira criminosa", esclarece.

Ele acrescenta que todas estas novidades —a diversificação dos negócios e o surgimento de diversos atores— ocorrem num contexto de fragilidade dos sistemas judiciais e de segurança.

"A corrupção sempre foi um problema, mas hoje a democracia está mais sitiada do que nunca pelo crime organizado. Vemos a penetração sistemática desses grupos no Estado", afirma McDermott.

Douglas Farah concorda.

Cocaína sobre a mesa
A cocaína continua sendo um eixo central para o crime organizado na América Latina - Getty Images via BBC

"Tudo isso é facilitado pela criminalização de vários Estados, que estão fazendo alianças com essas organizações criminosas", afirma.

"Um fator fundamental foi a pandemia, pois os Estados ficaram paralisados e sem recursos enquanto certos grupos continuavam a forjar alianças. Isso permitiu uma ampliação dos grupos que possuem recursos para entrar em novos mercados", acrescenta.

Em todo o caso, em meio a esta diversificação empresarial, o tráfico de drogas e da cocaína continua a ser um eixo fundamental.

De acordo com o relatório das Nações Unidas, o cultivo de coca na América Latina disparou 35% entre 2020 e 2021.

Isto não só representa um número recorde, mas também é o aumento anual mais acentuado desde 2016.

3. Anonimato dos líderes

A nova geração de traficantes de drogas pouco ou nada tem a ver com o estereótipo que Pablo Escobar encarnava como ninguém.

E esta é outra característica do crime organizado de hoje.

Longe estão as excentricidades do principal líder do cartel de Medellín, que gostava de exibir a sua enorme fortuna.

Com sua postura sanguinária, Escobar fez questão de que todos o conhecessem, tornando-se o homem mais procurado entre o final dos anos 80 e início dos 90.

Os novos líderes dos grupos criminosos latino-americanos parecem ter aprendido a lição e hoje preferem se manter discretos.

Jeremy McDermott usou o termo "Os Invisíveis" para se referir a esses líderes em seu artigo intitulado "A nova geração de traficantes de drogas colombianos pós-Farc: 'Os Invisíveis'".

"A nova geração de traficantes aprendeu que o anonimato é a melhor proteção", diz o texto.

Outros especialistas entrevistados concordam com McDermott.

"Eles aprenderam que a exposição pública é perigosa. O anonimato impede que se haja conhecimento real da liderança", afirma Pablo Zeballos.

"Todos sabemos quem é o Niño Guerrero [líder do Tren de Aragua], mas a questão é: sabemos quem realmente é o Niño Guerrero? Sabemos como ele pensa, para onde vai? Estamos diante de um psicopata ou de um criminoso? Ele é realmente o único líder do grupo? São perguntas que ainda não têm resposta", acrescenta.

Retrato com qualidade ruim de 'Niño Guerrero'; ele aparece sério encarando a câmera
O 'Niño Guerrero' controlava o Tren de Aragua a partir da prisão na Venezuela; agora, ele está foragido - CORTESÍA OVP via BBC

Lucía Dammert, por sua vez, afirma que "hoje, pensar que vamos encontrar o Pablo Escobar desta época é uma construção midiática, uma série Netflix".

"Isso não acontece mais", aponta a especialista.

A situação atual faz com que, mais uma vez, o trabalho da polícia seja mais complexo. Obviamente, por não se saber ao certo quem são os líderes das gangues —se é que existe apenas um—, a tarefa de encontrá-los se torna mais difícil.

Mas este não é o único ensinamento que os novos líderes das gangues incorporaram. De acordo com a pesquisa de McDermott, eles agora também sabem "que a prata é muito mais eficaz que o chumbo".

O codiretor da InSight Crime afirma que atualmente os líderes dos grupos criminosos "não são protegidos por um exército de assassinos, mas por contadores e advogados".

"É mais provável que os grandes traficantes de drogas atuais tenham um mestrado em administração do que um histórico de violência nas ruas", diz ele.

4. O fim das 'ilhas de paz'

Nos últimos anos, vários países latino-americanos que costumavam ser relativamente livres do crime organizado estão vivendo um aumento da insegurança, da violência e da criminalidade.

"Praticamente não existem mais as chamadas 'ilhas de paz" porque os mercados ilegais estão presentes em quase todos os países", afirma Lucía Dammert.

O Equador é talvez o exemplo mais óbvio. Em poucos anos, o país deixou de ser um local de trânsito de drogas para se tornar um centro de distribuição, armazenamento e processamento.

Isto provocou uma violência sem precedentes: em 2023, o país bateu o seu recorde histórico de homicídios com 7.878 mortes, o que reflete um aumento drástico se compararmos com os números de 2019, quando houve 1.187 homicídios.

Outros países como o Chile, a Costa Rica ou o Uruguai também registraram um aumento da insegurança, embora não no nível do Equador.

"É preciso esclarecer que estes países sempre tiveram criminalidade local. Mas o que observamos agora é que as suas realidades nacionais estão sendo alteradas pela entrada de organizações internacionais, pela mutação das suas próprias gangues locais e pelo controle de certos territórios ou portos", explica Zeballos.

Guarda fortemente armado observa três presos, que levam mãos à cabeça
Soldados equatorianos monitoram presos na Penitenciária do Litoral, a maior prisão do país, localizada em Guayaquil - Getty Images via BBC

Segundo especialistas, isso ocorre principalmente pela busca por locais mais seguros por onde possam transitar mercadorias ilegais.

"Eles estão em busca de novas rotas porque agora a Colômbia ou o Porto de Santos, no Brasil, estão tão conhecidos que qualquer carga tem maior risco de apreensão", diz Jeremy McDermott.

A expansão dessas gangues também foi impulsionada pela crise migratória que vive a região, alerta Pablo Zeballos.

Falando particularmente do Tren de Aragua, ele aponta que "como resultado da diáspora venezuelana, que inclui criminosos, gerou-se uma presença mais ampla em diferentes países".

Os países que estão vivendo esse novo cenário não estão preparados para lidar com estes grupos do crime organizado, alerta Douglas Farah.

"São países que não pensaram na segurança interna como uma questão e agora têm que fazê-lo", afirma.

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