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Guido Palomba

Cracolândia, uma solução não utópica

Em casos graves, internação compulsória é medida humanitária de saúde pública

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Guido Palomba

Psiquiatra forense, é membro emérito e ex-presidente da Academia de Medicina de São Paulo

A cracolândia paulistana existe há mais de 30 anos —uma chaga aberta no coração da cidade de São Paulo.

Por quê? Nunca foi feito o correto: tratar os seus frequentadores como doentes mentais gravíssimos. E doentes dessa natureza têm que ser internados compulsoriamente em hospitais psiquiátricos por período de tempo longo.

O problema é que a psiquiatria parece "terra de ninguém" e muitos querem dar pitaco. Em razão disso, várias pessoas posicionam-se contra a internação compulsória. Um dos argumentos mais evocados é o de que os pacientes têm o direito de escolher o próprio tratamento. Simplesmente impossível, pois estão dominados pelo vício, consequentemente sem livre-arbítrio; ou seja, sem possibilidade de decisão.

Aglomeração da cracolândia na rua dos Protestantes, no centro de São Paulo - Danilo Verpa - 15.ago.2023/Folhapress - Folhapress

Caso sofressem processos de interdição, todos, sem exceção, seriam interditados por moléstia psíquica grave e incapacitante. E, acima disso, é preciso lembrar que antes do direito vem o dever: "Cumpras o teu dever". Se todos cumprissem o dever, não precisaria do direito individual, que nasce do débito do que não foi realizado. A internação compulsória é medida humanitária de saúde pública. São doentes, desesperados que já nada mais têm a não ser a tentação do vício por todos os lados e a fatalidade trágica pela frente.

Para acabar, sem utopias, com a cracolândia e dar uma chance de vida digna aos seus frequentadores é preciso pulso firme e implantar os dez seguintes passos.

Primeiro: tirar os dependentes das ruas, compulsoriamente, encaminhando-os a lugar previamente preparado, com características hospitalares, com médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais etc. O antigo Hospital do Juquery já abrigou mais de 10 mil pacientes, mas hoje está ocioso e poderia ser adaptado para receber os cerca de mil viciados que habitam, atualmente, a cracolândia paulistana.

Segundo: triagem médica e jurídica; ou seja, quem de fato é doente, permanece, quem não é volta para a rua, enquanto os traficantes devem ser encaminhados à polícia.

Terceiro: promover a higiene física, com roupas limpas, alimentação adequada, hidratação, administrar vitamínicos, combater infecções e aplicar sedativos ditos menores (ansiolíticos e miorrelaxantes) para combater a fissura.

Quarto: inseri-los na laborterapia de cunho profissionalizante: ensinar a cozinhar, carpintaria, cerâmica etc., mesclando com lazer —jogos, pintura e música. Esse período precisa ser longo; caso contrário, recaem rapidamente.

Quinto: o serviço social se incumbirá de procurar parentes do dependente químico, formando grupos de terapia para ajudar no relacionamento paciente-família.

Sexto: à medida que os benefícios terapêuticos físicos e mentais se solidificam, inicia-se o processo de alta progressiva, passando do regime de internação fechado para o semiaberto, que é a residência terapêutica, com saídas programadas e monitoradas pelos chamados atendentes terapêuticos.

Sétimo: passagem do regime semiaberto ao aberto, por meio do hospital-dia; ou seja, durante o dia frequenta a residência terapêutica, participa de reuniões coletivas, laborterapia, recreação e, no fim da tarde, volta para casa.

Oitavo: alta médica com segmento ambulatorial para ex-viciados nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), já existentes. Em caso de recidiva, volta ao regime de internação.

Nono: as entidades religiosas e os movimentos caritativos ajudariam na reintegração social do paciente ao criar oportunidades de trabalho e circunstâncias positivas, as quais são fundamentais nesse momento em que se visa a reinserção de doentes estigmatizados em uma sociedade preconceituosa.

Décimo: ação positiva dos governos com a indústria que empregar ex-pacientes, desonerando-a de certos tributos fiscais, por exemplo.

E, finalmente, dizer que "paciente psiquiátrico tem o direito de escolher se quer ou não ser tratado" equivale a estar diante de um humano debruçado na janela do 10º andar de um edifício, pronto para se suicidar, e não tentar agarrá-lo pelas pernas, pela camisa, pelos cabelos —um ato obrigatório em virtude de ordem moral. Tu deves fazê-lo.

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