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Ana Trigo

Internação compulsória é saída simplista para problema complexo

Precisamos é de vontade política de verdade, com abordagem multidisciplinar

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Ana Trigo

Jornalista, é mestra e doutora em ciência da religião (PUC-SP); pesquisadora acadêmica da cracolândia desde 2013, é autora da tese “Mulher é muito difícil – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo"

A cracolândia é o maior caso de fracasso do poder público. Desde os primeiros relatos de uso de crack na capital paulista até os dias de hoje, tudo o que foi feito resume-se à punição e ao encarceramento dos dependentes químicos, apesar dos inúmeros programas já apresentados. Em artigo nesta Folha ("Cracolândia, uma solução não utópica", 8/4), o psiquiatra Guido Palomba trouxe mais uma solução que povoa o imaginário da população: a internação compulsória.

Justificar que esse é o único recurso para pessoas que "não têm capacidade de decisão" é apresentar uma saída simplista para um problema complexo. Até cair nas cracolândias, os dependentes químicos trilham um longo caminho, às vezes de décadas, de uso abuso abusivo de substâncias. Mas, antes disso, essas pessoas foram levadas por suas famílias a vários tipos de atendimento. Só que não existe um protocolo de prevenção que trabalhe para evitar a piora do problema. É como um pronto-socorro que não tem a preocupação de fato com o problema.

Policiais civis e GCMs abordam dependentes químicos
Agentes da Polícia Civil e da GCM abordam dependentes de drogas na rua dos Protestantes, no centro de São Paulo, que atualmente abriga a cracolândia - Divulgação/SSP - Divulgação/SSP

O dispositivo da internação compulsória está previsto na lei 13.840/19, sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e prevê prazo máximo de 90 dias de permanência hospitalar. Será que esse período é de fato suficiente para tratar um paciente que tem anos de uso abusivo de substâncias diversas? Ou a proposta é apenas para limpar a cidade?

A mesma lei prevê o fortalecimento da participação das comunidades terapêuticas de cunho religioso como forma de tratamento em detrimento dos CAPs (Centros de Atenção Psicossocial). Ainda que existam instituições religiosas que tenham um atendimento humanizado, a estadia nessas casas não deixa também de ser um encarceramento. Mesmo que a permanência seja voluntária, o modelo não permite que a pessoa acolhida tenha liberdade de ir e vir ou tenha qualquer contato com o mundo exterior à instituição.

Programas internacionais que tiveram sucesso na atenção à dependência química apresentam um leque de ações multidisciplinares em que o encarceramento em prisões, manicômios ou instituições religiosas basicamente não existe. Por aqui, é a única solução. Outras propostas nunca são apresentadas. Ou pior, são atacadas e criticadas.

Que o digam os coletivos "É de Lei" e "Craco Resiste", que atuam na cracolândia com projetos de redução de danos e que sofrem sanções o tempo todo. Ou o psiquiatra Flavio Falcone, que faz trabalho de musicoterapia nos fluxos com os usuários de drogas e já foi preso por "perturbação da ordem". A arteterapia é reconhecida mundialmente como uma ferramenta eficaz de redução de danos. Aqui, ela é criminalizada.

Todas as propostas apresentadas são sempre para punir ainda um grupo que está mais do que debilitado socialmente e fisicamente e que só chegou a esse estado porque foi ignorado pelos serviços públicos e abandonado à própria sorte.

O que precisamos é de vontade política de verdade, que apresente um programa realmente multidisciplinar e que entenda que o usuário de drogas ou o dependente químico são seres humanos. E não o lixo que deve ser retirado das ruas.

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