Descrição de chapéu Obituário Maria das Dores Silveira Gnaccarini (1938 - 2024)

Mortes: Foi uma avó única e múltipla

Maria das Dores Silveira Gnaccarini convenceu a si e a todos de que viveria para sempre

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Lorena Gnaccarini Falavigna
São Paulo

Minha avó. Que pessoa absolutamente única. Independente e livre como nenhuma outra mulher de seu tempo; carente e suplicante como todas elas. Ao mesmo tempo magnânima e frágil. Nasceu em Capivari, interior de São Paulo, em 1938, mas logo no início da juventude se casou com meu avô, José César Aprilanti Gnaccarini, então professor da UnB (Universidade de Brasília), e foi morar na modernidade da cidade recém-construída.

No dia de seu aniversário de 24 anos, o cosmonauta soviético Iuri Gagárin desembarcou em Brasília, iniciando sua passagem histórica pelo país, onde encerraria um tour pela América Latina sendo condecorado por Jânio Quadros com a Ordem do Mérito Aeronáutico; minha avó teve a oportunidade de vê-lo e cumprimentá-lo, coisa de que falou por toda a vida.

Sua origem interiorana, em uma cidade muito marcada pelo conservadorismo, misturava-se ao seu espírito livre e aventureiro. Ela era mesmo um emaranhado de contradições, e cultivava cada uma delas: se deixou ser várias até o fim.

Maria das Dores Silveira Gnaccarini (1938 - 2024) e a neta Lorena
Maria das Dores Silveira Gnaccarini (1938 - 2024) e a neta Lorena - Arquivo pessoal

Maria das Dores Silveira Gnaccarini. De casada, conservou o nome e o coração —demorei tanto a perceber! A vida toda andou por aí com as iniciais do meu avô penduradas no pescoço, com a foto dele dentro da Bíblia. Falava mal em toda oportunidade.

Dodô. Funcionária pública da qual Machado de Assis teria tirado muito sarro. Não por nada: só que não tinha nascido para isso. A vida toda trabalhou no tribunal federal e esbanjou o senso de justiça de uma Rainha de Copas. Na verdade, assim como Machado, guardava por trás da profissão uma verdadeira artista —demorei tanto a perceber! Desenhista, pintora. Pianista de ouvido. Acima de tudo, atriz: a vida toda foi sempre o centro de toda cena.

Vó Maria, vovó. Tanta alegria me deu na infância. Tanto ressentimento me deu depois. Me disse as piores palavras enquanto deslizava docemente os dedinhos pelos meus cabelos. Me acusou das piores mentiras enquanto dividia comigo uma feijoada gostosa. Fez as piores provocações enquanto me estendia a mão com um presente. E, de repente, sussurrou: você é tão delicada. Foi a última coisa; como que para apagar todo o resto.

A verdade é que, como toda neta, não conheci sua vida toda, apenas a parte que me coube dela. Mas percebi —demorei, mas percebi. O que ela queria era marcar presença na vida de quem cruzasse seu caminho, e marcou. Que avó absolutamente única; absolutamente múltipla. Não há quem possa chamá-la de sem graça ou medíocre. Maria das Dores foi um bicho de sete cabeças, uma hidra que convenceu a si e a todos de que viveria para sempre, e parece mesmo que vai. A morte mais inacreditável é a dela.

Deixou três filhas: Isabel, Suzana e Viviane; três netos: Lorena, Gustavo e Carolina; e muitas amizades, as quais ela criava por onde passava. Foi velada no sobrado histórico do centro de Capivari, que era de sua mãe e que ela felizmente conseguiu reformar como queria.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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