Entidade que recebe R$ 1,9 bi da Prefeitura de SP é indicada a conselho de drogas, e integrantes reagem

Após críticas, Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina recusou indicação para integrar o Comuda

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São Paulo

Uma reunião que iria discutir denúncias de internações forçadas e agressões contra usuários de drogas no cracolândia, no centro de São Paulo, acabou cancelada em meio a uma disputa entre a prefeitura e integrantes do Comuda (Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas e Álcool).

O cancelamento da reunião, por falta de quórum mínimo, ocorre após membros do conselho reagirem à indicação da SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina), feita pela Prefeitura de São Paulo, para integrar o órgão. Uma das maiores organizações sociais da área de saúde em atividade, a SPDM tem cinco contratos de gestão e um termo de cooperação firmados com a Secretaria Municipal de Saúde.

As relações contratuais entre a administração municipal e a entidade eram um dos argumentos dos membros do conselho contra a indicação da SPDM. Além disso, a lei que criou o Comuda exige que as organizações não governamentais convidadas para integrá-lo sejam "destinadas à prevenção do uso indevido de álcool e outras drogas, tratamento, recuperação e reinserção social de dependentes", isto é, que esta seja sua principal atividade.

Diante das reclamações, a SPDM afirmou à Folha que recusou o convite da prefeitura "apesar de entender que seu estatuto abrange de maneira implícita a prevenção do uso indevido de drogas" e de ter "larga experiência na gestão de serviços de saúde mental e atendimento de dependentes químicos de diferentes complexidades".

O Edifício Matarazzo, sede da Prefeitura de São Paulo - Avener Prado - 29.dez.2016/Folhapress

"Todos os valores recebidos da Secretaria Municipal de Saúde pela SPDM são destinados exclusivamente ao cumprimento dos contratos de gestão de diferentes serviços de saúde municipais, no modelo de Organização Social de Saúde, que consiste na parceria entre o poder público e o terceiro setor para o fortalecimento do SUS (Sistema Único de Saúde), sem nenhuma finalidade lucrativa", acrescentou a SPDM.

O estatuto da entidade estabelece como seus objetivos a prestação de "serviços nas áreas de saúde, educação, pesquisa científica e assistência social", além de gestão hospitalar.

Após a indicação da SPDM ao Comuda, o conselho pediu pareceres do MP-SP (Ministério Público de São Paulo) e da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) sobre a indicação. Ambos opinaram que a SPDM não cumpre requisitos exigidos pela lei municipal, uma vez que a entidade não tem como atividade preponderante a prevenção do uso de drogas.

A OAB registra ainda, com base em documentos fornecidos pela prefeitura, que a SPDM receberá neste ano ao menos R$ 1,89 bilhão em contratos com a Secretaria Municipal de Saúde. Esse é o valor empenhado (separado para pagamento) pela pasta em nome da entidade, e corresponde a 10% do orçamento da secretaria.

A lei não proíbe a indicação de entidade que receba dinheiro dos cofres municipais. Por outro lado, o conselho tem o dever de avaliar a política de drogas do município de forma isenta, inclusive apontando erros e sugerindo melhorias.

Em seu parecer, a OAB aponta para o risco de que, "em situações de potencial conflito de interesse, a entidade pode tender a preservar seus interesses institucionais em detrimento do interesse público, comprometendo sua isenção e capacidade de fiscalizar seus próprios contratos".

Já o Ministério Público opinou que a SPDM "não cumpre os balizamentos" da lei, mas afirmou que a instância adequada para resolver a disputa é o plenário do conselho.

A prefeitura manteve seu posicionamento, e os pareceres deveriam ser um dos pontos de discussão no encontro marcado para o último dia 4.

Segundo uma moção de repúdio publicada por 7 dos 22 membros do Comuda, nenhum representante do governo municipal apareceu na reunião, que foi convocada seis dias antes. Representantes de organizações sociais indicadas pela prefeitura também teriam faltado, segundo a carta.

Questionada, a prefeitura havia dito que "encaminhou a questão para análise da Procuradoria Geral do Município, tendo solicitado a suspensão da reunião na manhã do dia 4 de junho" após os questionamentos. Isso ocorreu antes de a SPDM declinar do convite para integrar o Comuda.

A vereadora Luana Alves, a deputada estadual Mônica Seixas e a deputada federal Sâmia Bomfim, todas do PSOL, protocolaram um ofício conjunto pedindo explicações a nove secretarias municipais sobre o caso. Elas questionam a gestão municipal sobre a pauta da reunião, sobre os fundamentos legais para a indicação da SPDM ao conselho, sobre denúncias de internações involuntárias e sobre o fluxo de atendimento que leva a essas internações.

Cancelamento de reuniões ocorre após aumento de denúncias

As denúncias sobre aumento de internações involuntárias na cracolândia, um dos temas que seriam debatidos na reunião, envolvem a SPDM. A entidade é gestora do HUB de Cuidados em Crack e Outras Drogas, órgão do governo do estado que é um centro de triagem de dependentes químicos da cracolândia.

É para lá que são levados usuários de drogas abordados pelo Serviço de Cuidados Prolongados (SCP), que é municipal. No mês passado, funcionários do Redenção —programa municipal para tratamento de dependentes químicos— publicaram uma carta afirmando que o SCP, administrado pela Afne (Associação Filantrópica Nova Esperança), tem atuado para internar compulsoriamente o máximo de pessoas possível.

O texto foi assinado pela Equipe Redenção na Rua, sem especificar os nomes dos servidores que endossaram o documento. Na ocasião, a gestão Ricardo Nunes (MDB) negou que as internações ocorram sem autorização judicial.

Desde então, ao menos cinco cartas de profissionais que atuam em serviços de saúde que atendem a cracolândia foram escritas reafirmando as denúncias e acrescentando novos casos. Essas cartas também foram publicadas de forma anônima, identificando apenas o serviço em que os signatários atuam.

Sobre este assunto, a prefeitura afirmou à época que o SCP "oferece acolhimento e tratamento integral e multidisciplinar para dependentes de álcool e drogas com o objetivo de reinserir os pacientes na sociedade do ponto de vista biopsicossocial e econômico".

Nesta terça (11), a gestão municipal ressaltou que o contrato da prefeitura com a SPDM "não tem relação com o HUB de Cuidados em Crack e Outras Drogas, que é de responsabilidade da gestão estadual".

"A Secretaria Municipal de Saúde reitera o seu compromisso com o diálogo com todas as entidades em prol do desenvolvimento das ações de Políticas sobre Drogas e Álcool", afirmou a gestão Nunes.

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