Internações sem consentimento aumentam na cracolândia, em meio a denúncias de agressões

Mudança na política estadual antidrogas se refletiu em mais hospitalizações no último ano; as involuntárias representam 5% do total

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São Paulo

Pouco mais de um ano após a gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) mudar a política de combate a entorpecentes em São Paulo, o número de internações involuntárias de usuários de drogas disparou na capital paulista.

Ao mesmo tempo, surgiram denúncias de agressões contra pacientes em unidades de saúde que atendem a cracolândia, no centro da cidade.

Os encaminhamentos desse tipo eram exceções até abril do ano passado, quando o governo estadual anunciou aumento da disponibilidade de leitos psiquiátricos, em detrimento ao tratamento prioritariamente ambulatorial, no qual as internações eram exceções. Desde então, foram ao menos 418 internações involuntárias.

Não há dados disponíveis sobre internações involuntárias antes disso.

Na comparação entre junho de 2023 e o mesmo mês neste ano, foram de 11 para 31 registros. O maior número de hospitalizações ocorreu em maio, quando 58 casos foram notificados ao Ministério Público.

Guarda Municipal e policial militar estão em pé em frente a entulho e pessoas aglomeradas no meio da rua
Guarda municipal e policial militar acompanham ação de limpeza em rua ocupada por usuários de drogas no centro de São Paulo - Danilo Verpa - 6.jun.24/Folhapress

Diferente das internações voluntárias, nas quais o usuário é capaz de assinar sua admissão ao chegar ao hospital, as involuntárias ocorrem quando é atestada a incapacidade do paciente de decidir sobre o processo terapêutico, devido ao alto grau de intoxicação, o que pode colocá-lo em risco.

Nesse caso, o pedido de internação é feito por escrito por um parente ou pessoa próxima e, na ausência de familiares, por um agente de saúde. Nos dois casos, é preciso um laudo assinado por um psiquiatra. Os casos devem ser informados ao Ministério Público e à Defensoria até 72 horas após a internação, que tem prazo máximo de 90 dias.

A internação involuntária também é diferente da compulsória, determinada por um juiz após pedido médico e sem necessidade de pedido de terceiros.

O crescimento das involuntárias ocorreu a partir da transformação do antigo Cratod (Centro de Referência de Atendimento a Tabaco, Álcool e Outras Drogas) numa espécie de pronto-socorro no tratamento de vício em drogas na capital voltado, principalmente, a atender frequentadores da cracolândia.

Chamado agora de Hub de Cuidados em Crack e outras Drogas, o espaço no centro de São Paulo foi reinaugurado em abril do ano passado.

Dos 19.098 mil atendimentos feitos em pouco mais de um ano, 8.473 se converteram em internações em hospitais psiquiátricos, sendo 409 involuntárias. Isso representam cerca de 5% do total. Os números são da gestão Tarcísio.

Dados do Ministério Público, porém, registraram 418 hospitalizações involuntárias no mesmo período.

Procurado, o governo estadual disse que está à disposição dos promotores para esclarecer a diferença nos dados.

Afirmou também que a maior parte dos pacientes chega ao Hub de forma voluntária, "expressando o desejo de tratamento".

É no novo Hub onde se concentram as denúncias de agressões. Pessoas que já trabalharam na unidade afirmam que já presenciaram usuários sendo arrastados, carregados pelas pernas e braços, e feridos com chutes pela equipe de segurança.

Quatro ex-funcionários do Hub e duas pessoas que trabalham no atendimento municipal à cracolândia disseram à Folha e relataram algum tipo de agressão.

Segundo dois ex-funcionários, um pedaço de madeira com a palavra "internação" foi usado para ameaçar os pacientes em casos de confusão.

"Fizeram isso de deboche, puro deboche", diz o psicólogo Diego William de Faria Rennó, 38, que trabalhou no Hub até março. "Já vi segurança dando chute no peito do paciente ao lado do supervisor de enfermagem", afirma ele. "O mesmo supervisor de enfermagem riu com o segurança do ocorrido."

A direção do Hub negou o registro ou denúncia de "qualquer caso de 'agressão' ou 'espancamento'.

Há reclamações também contra a abordagem feita por agentes do SCP (Serviço de Cuidados Prolongados), da prefeitura. Pacientes e funcionários dizem que policiais militares acompanham essas equipes na rua.

Questionada, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) afirmou que coloca todas as opções de abordagem à disposição do paciente, conforme nota técnica.

A Polícia Militar informou que, além de fazer o policiamento, sua ação na cracolândia ocorre "em integração a outros órgãos". Desde março, policiais militares encaminharam 69 usuários ao Hub. As ações foram incentivadas em curso ministrado a militares que atuam na região central. Segundo o governo estadual, os encaminhamentos foram voluntários.

Ex-funcionários do Hub dizem ainda que a direção da unidade é conivente com as agressões. A reportagem teve acesso à mensagem de um dos coordenadores, enviada aos subordinados, orientando-os a não intervir em abordagens de seguranças a pacientes.

"Não vamos interferir de maneira contrária nessa conduta. Isso tem gerado uma sensação de desautorização da equipe de segurança com repercussões ruins", diz a mensagem. Ele pede, ainda, que os profissionais avisem a coordenação caso identifiquem algum "manejo inadequado".

Sobre isso, a direção do Hub afirmou que orienta profissionais de outras equipes a não interferir no manejo do paciente para "manter a integridade física" dos funcionários.

Apesar do aumento de hospitalizações, o tempo de permanência dos dependentes químicos nesses estabelecimentos nunca foi tão baixo.

Segundo documento obtido pela Folha, de abril deste ano, a média de permanência de pacientes encaminhados pelo Hub em 2023 foi de 39,88 dias, "o pior nível histórico", diz trecho de comunicado enviado ao estado pela direção do Hospital Lacan, um dos equipamentos contratados.

"Atribui-se esta queda ao aumento do número de altas a pedido observado no ano de 2023, especificamente de pacientes procedentes do Hub", diz outro trecho.

A secretaria de Saúde afirmou que a média de permanência atende ao plano terapêutico oferecido no local.

De acordo com Arthur Pinto Filho, promotor de Saúde Pública, o tempo médio de internação dos pacientes encaminhados pelo Hub aos hospitais psiquiátricos do estado é de 20 dias, bem abaixo dos 90 dias preconizados para completar o processo de desintoxicação.

Segundo ele, isso provoca o efeito porta-giratória em que os usuários saem das internações e voltam para as ruas. A reportagem conversou com um usuário que relatou ter passado por mais de dez internações em um ano. "A pessoa sai e ninguém sabe para onde", diz o promotor.

Nas últimas semanas, profissionais de diferentes equipamentos de saúde mental se reuniram para divulgar cartas de repúdio à política estadual empregada. No texto, eles relataram supostas internações forçadas e indiscriminadas na cracolândia, além de distribuição de bebida alcoólica, comida e refrigerante para convencer usuários a aceitarem internação no SCP.

Sobre este assunto, a prefeitura afirmou na época em que a carta foi divulgada que o SCP "oferece acolhimento e tratamento integral e multidisciplinar". O governo estadual não comentou.

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