Descrição de chapéu Quilombos do Brasil

Quilombolas enfrentam pressão imobiliária e se mobilizam por terras na Bahia

Comunidade Quingoma, na região metropolitana de Salvador, é ameaçada por avanço de construções

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Lauro de Freitas (BA) e Brasília

Bambuzais formam uma espécie de túnel na estrada que dá acesso ao quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas, cidade da região metropolitana de Salvador. Ruas de terra serpenteiam a comunidade, cercada por áreas remanescentes de mata atlântica e onde vivem em torno de 5.000 pessoas.

No entorno das casas, tratores trabalham desde as primeiras horas da manhã na terraplanagem e na supressão da vegetação nativa para a construção de um condomínio residencial.

Certificado pela Fundação Palmares desde 2013, o quilombo Quingoma é um pedaço de terra cercado de pressões por todos os lados. Enquanto aguarda pela titulação, os moradores veem as construções avançarem sobre o território, que fica em uma cobiçada área de expansão urbana da Grande Salvador.

Rejane Rodrigues, 39, líder da comunidade quilombola Quingoma observa obras de condomínio próximo a casas - Ricardo Borges/Folhapress

"As políticas públicas não chegam e ainda temos que enfrentar diversas formas de violência. A sensação é que a gente está lutando contra um leão", desabafa Rejane Rodrigues, 39, líder da comunidade quilombola.

A comunidade luta pela titulação do território desde 2005. A primeira conquista veio há 11 anos, com a certificação da Fundação Palmares. Mas o processo de oficialização de posse da terra ainda não chegou: está paralisado e não há horizonte para um desfecho.

A titulação do território, de responsabilidade do governo federal, é a etapa final de reconhecimento de uma comunidade quilombola. Cerca de 1.800 processos de regularização quilombola tramitam na esfera federal —além de garantir o usufruto exclusivo das terras, permite a reprodução do modo de vida das populações remanescentes de quilombos.

"A titulação é a garantia da segurança da posse para as presentes e futuras gerações. Para tanto, deve ser priorizado orçamento para as desapropriações de eventuais títulos de propriedade privada legítimos e a retirada pela desintrusão dos ocupantes não quilombolas", diz a advogada Patricia Menezes, do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico.

A origem da comunidade Quingoma remonta a 1569, com a presença de povos bantus após o início do tráfico negreiro para o Brasil. Ao longo dos séculos, sobreviveram na comunidade tradições ancestrais ligadas à cultura, costumes, modo de vida e religiosidade afro-brasileira.

Em março de 2023, o quilombo se tornou o primeiro lugar no Brasil a receber a certificação de território iorubá, honraria concedida por Ooni Ilê Ifé, o rei de Ifé, cidade na Nigéria.

Vivem no local famílias que dependem sobretudo da agricultura de subsistência, extrativismo e coleta de materiais recicláveis. Mas o Quingoma é considerado um quilombo urbano.

O processo de urbanização que toma conta da região seria uma das dificuldades técnicas apontadas pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para a conclusão do processo. Em nota, o órgão afirmou que busca uma solução fundiária para a titulação e classifica o caso como singular por conta da ocupação de empreendimentos públicos e privados no território.

Parte das construções foi feita após a certificação do território, em 2013. Exemplo disso é a Via Metropolitana, rodovia de 11 quilômetros construída pelo Governo da Bahia para ser uma rota alternativa para o litoral norte, contornando a região central de Lauro de Freitas.

A estrada foi inaugurada em 2018, na gestão do então governador Rui Costa (PT) —hoje ministro da Casa Civil do governo Lula (PT). A rodovia divide em duas partes a área de 1.225 hectares que consta no Relatório Técnico de Identificação e Demarcação, que identifica os limites e características do território quilombola.

No ano anterior, o governo baiano apresentou nova proposta de delimitação para o Quingoma com uma área de 284 hectares. Isso equivale a cerca de um quinto do tamanho do território pleiteado pela comunidade.

Enquanto o impasse permanece, novas construções avançam sobre as áreas que não constam na proposta feita pelo governo baiano. Uma delas é o Loteamento Joanes Parque, da MAC Empreendimentos, que prevê 631 lotes residenciais.

A construção, que fica nas margens da Via Metropolitana, já foi iniciada. Máquinas fazem o desmatamento de áreas verdes e abrem novas vias na área do loteamento.

Famílias que moram no entorno dizem temer o impacto da obra na comunidade: "Estou aqui na mão de Deus, não tenho condições de ir para outro canto", afirma a moradora Priscila Pereira Costa, 41, enquanto observa o vaivém de tratores.

Em abril, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública contra União, Estado da Bahia, município de Lauro de Freitas, MAC Empreendimentos e Incra para impedir a construção e a comercialização dos lotes. A ação tem como propósito proteger os direitos fundamentais dos quilombolas.

Conforme o MPF, os empreendimentos em curso "têm causado devastação ambiental do território e a diminuição da vegetação nativa, além de comprometer o modo de ser e viver da comunidade tradicional".

Em nota, a MAC Empreendimentos diz que o terreno do loteamento fazia parte de um inventário de 1955, propriedade da mesma família desde 1910 e será destinado a loteamento residencial para a população de baixa renda.

A empresa ainda afirma que o terreno não faz parte de território quilombola e que seguiu todos os trâmites legais, como licenças ambientais, autorizações para supressão de vegetação, permissões de uso e registro de incorporação imobiliária.

Outras construções também alteraram o ecossistema local. Uma delas represou uma nascente e fez com que a água avançasse dez metros e chegasse a áreas próximas das casas. Com medo de enchentes, parte dos moradores deixou o local. Terrenos em declive usados para agricultura foram inundados.

Também há um lixão desativado que fica dentro do território, na área de preservação ambiental Joanes-Ipitanga. O mesmo local abriga dois rios que alimentam o sistema de abastecimento de água da Grande Salvador.

Ao mesmo tempo, faltam políticas públicas para atender as famílias que vivem na comunidade: o Quingoma não tem posto de saúde, e o transporte público, feito por vans, tem periodicidade irregular.

A pressão dos novos empreendimentos mobilizou os quilombolas, que acionaram órgãos ambientais, Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União.

Uma das líderes da comunidade, Rejane Rodrigues recebeu ameaças há quatro meses, deixou o quilombo e foi incluída em um programa de proteção a defensores dos direitos humanos.

Os temores se intensificaram a partir do ano passado, quando foi assassinada a líder quilombola Bernadete Pacífico, do quilombo Pitanga dos Palmares, em Simões Filho. A polícia denunciou cinco pessoas pelo crime —a maioria teria ligação com o tráfico de drogas.

Meses antes, o Quingoma abrigou encontro de líderes quilombolas com a então presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministra Rosa Weber. Bernadete Pacífico foi uma das pessoas que participaram do ato, ocasião em que relatou ameaças e cobrou celeridade na titulação das terras.

Em meio a um clima de comoção causado pelo crime, a comunidade Pitanga dos Palmares foi declarada como Comunidade Remanescente de Quilombo pelo governo federal.

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