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Na mira de Bolsonaro, Paulo Freire não está no currículo, mas é referência em escolas

Educador que criou modelo de alfabetização é criticado por candidato

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Paula Calçade
Nova Escola

O mais famoso educador brasileiro, Paulo Freire, acreditava que ensinar era como despertar o aluno para ler o mundo. Ou seja, possibilitaria a formação da consciência sobre quem o sujeito é no meio em que ele vive. Para ele, as grandes transformações partem desse princípio. A alfabetização era, para o educador, um modo de os desfavorecidos romperem o silêncio em que são colocados, podendo ser, então, os protagonistas da própria história, como escreveu em seu livro "Pedagogia do Oprimido".

A suposta aplicação de sua filosofia nas escolas públicas é alvo de críticas por parte do candidato à presidência, Jair Bolsonaro (PSL), para quem seus ensinamentos "marxistas" atrapalham o desenvolvimento dos alunos. Ao criticar o Ministério da Educação (MEC), disse que se eleito "vai entrar com um lança-chamas no MEC e tirar o Paulo Freire lá de dentro".

Paulo Freire durante entrevista à Folha
Paulo Freire durante entrevista à Folha - Sergio Tomisaki - 7.dez.88/Folhapress

Paulo Freire teve atuação e reconhecimento internacional. "Pedagogia do Oprimido" é o único livro brasileiro a aparecer na lista dos 100 mais pedidos pelas universidades de língua inglesa, segundo o projeto Open Syllabus, que reúne dados do mundo acadêmico. Outras 20 obras do escritor também aparecem em outros rankings, como "Política e Educação". Além disso, o educador é o terceiro pensador mais citado em universidades da área de humanas em todo o mundo, de acordo com levantamento feito pela ferramenta de pesquisa para literatura acadêmica Google Scholar, que mostra que Freire foi referenciado 72.359 vezes.

Apesar desse reconhecimento, o trabalho do educador é alvo de críticas também pelo Programa Escola sem Partido, que acusa professores das escolas públicas de disseminar conhecimento com viés político em sala de aula. O programa, atualmente, segue em discussão no Congresso e é uma proposta de lei que torna obrigatória a afixação em todas as salas de aula de Ensino Fundamental e Médio de um cartaz com “os deveres do professor”. Entre outros tópicos, o texto destaca que “os professores não devem se aproveitar da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões e preferências ideológicas”.

Com o acirramento da campanha eleitoral, o trabalho do educador ganhou foco, mas de forma distorcida, levando muitos pais e até professores a repassar frases e fatos que nada têm a ver com o trabalho de Paulo Freire. 

Contra o analfabetismo

No Brasil, em 1960, Paulo Freire desenvolveu a metodologia de alfabetização que realizou, entre outros feitos, a possibilidade de alfabetizar 300 cortadores de cana no Rio Grande do Norte, em apenas 45 dias. Paulo Freire ficou conhecido, assim, pelo método de alfabetização para adultos que leva seu nome. Dessa forma, o pensamento pedagógico do educador sempre se assumiu como político, uma vez que seus estudos se concentravam nas classes sociais menos favorecidas e que, na época, não eram totalmente atendidas pelas escolas públicas.

Os estudos e atuações de Paulo Freire, então, faziam sentido na realidade em que ele estava inserido. Em 1950, metade dos brasileiros eram analfabetos. Hoje, entre as pessoas com 15 anos ou mais no país, 7% não sabem ler e escrever, segundo o IBGE. Apesar da queda gradativa ao passar das últimas décadas, esse número significa que o Brasil ainda está entre os dez países com mais analfabetos no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Assim, o estudo de Freire continua sendo atual.

O educador também foi condecorado como Patrono da Educação Brasileira em 2012, por meio de lei sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff e seu legado foi reconhecido pela Unesco. O título no Brasil foi concedido após votação unânime na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado naquele ano. Em oposição, um abaixo-assinado enviado ao Congresso Nacional em 2017, apoiando o projeto de lei Escola Sem Partido, afirma que o método Paulo Freire “já demonstrou em todas as avaliações internacionais que é um fracasso retumbante”, recebendo 21 mil assinaturas apenas no primeiro mês de coleta de apoio virtual e pedindo para que a condecoração seja retirada. Em abril do ano passado, a convite do deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-RJ), filho do candidato à presidência Jair Bolsonaro, a criadora da petição participou de audiência pública na Câmara dos Deputados.
 

Paulo Freire nas salas de aula

No plano de governo de Jair Bolsonaro, o candidato expõe: "Além de mudar o método de gestão, na Educação também precisamos revisar e modernizar o conteúdo. Isso inclui a alfabetização, expurgando a ideologia de Paulo Freire”. O historiador Danilo Nakamura, mestre em História Econômica com enfoque em Educação, explica que a filosofia de Paulo Freire teve uma entrada muito forte nas redes públicas em dois momentos históricos do país. “Antes do golpe civil-militar de 1964, sua pedagogia estava associada ao projeto desenvolvimentista e as reformas de base do presidente João Goulart”, lembra, destacando também que, com o processo de redemocratização, Freire se tornou secretário da Educação da prefeitura de São Paulo. “Ele organizou um movimento importante de reorganização dos currículos, trazendo um debate sobre a visão de área de cada disciplina”, pontua.

Danilo afirma que, hoje em dia, o educador continua influenciando os debates pedagógicos na rede municipal. “Suas obras foram citadas nos dois últimos documentos curriculares, mas com menos força que nos dois momentos históricos que citei”, diz. Atualmente, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o Ensino Infantil e Fundamental, aprovada no Conselho Nacional de Educação (CNE) e que está em fase de contribuição regional para finalização dos currículos no final do ano, já não cita Paulo Freire. A BNCC do Ensino Médio, com discussões ainda mais recentes, também não faz referência ao educador.

Simaya Pimenta, pedagoga e mestre em Práticas Docentes no Ensino Fundamental destaca que o legado de Freire existe para quem pensa e pratica a Educação no dia a dia. “A educação freireana é eminentemente prática, pois sempre parte do conhecimento de mundo e da cultura das pessoas não para superá-los, mas para integrá-los com conhecimentos científicos e sistematizados, permitindo a todos os sujeitos uma visão mais ampliada e crítica da realidade”, explica.

O historiador Danilo Nakamura também pontua que, para ele, a pedagogia de Paulo Freire não propõe nenhum tipo de doutrinação, base de críticas de quem se opõe a seu trabalho. “Muito pelo contrário, Paulo Freire afirma que a pedagogia do oprimido é uma pedagogia que diz que devemos partir da própria ação e realidade dos menos favorecidos na atividade educativa”, explica. Assim, Danilo parafraseia Paulo Freire: “A educação bancária (expressão de Freire), aquela que vem com conteúdos prontos para ‘depositar’ na cabeça dos estudantes, é o que poderíamos chamar de doutrinadora, afinal, não existe reflexão por parte do estudante, ele se torna mero repositório de conteúdos pré-concebidos”, relê. Para o historiador, assim, doutrinar seria inculcar ideias sem que exista pensamento, reflexão, debate, divergência e crítica, como escrevia Freire.

Por defender essas ideias, Paulo Freire foi perseguido pela ditadura militar, instaurada em 1964, e acabou exilado no Chile e em outros países. “Isso aconteceu porque sua prática educativa possibilitava em muito pouco tempo alfabetizar adultos do campo e os menos favorecidos”, ressalta Sumaya Pimenta, explicando que esse método consistia em partir de palavras geradoras significativas para cada um daqueles que não dominavam a leitura, o que implicava partir do conhecimento de mundo dessas pessoas e não de textos mecânicos e distantes da realidade delas.  “Eminentes educadores norte-americanos, como Henry Giroux, Peter McLaren e Michael Apple, para ficarmos apenas com alguns, foram influenciados pelas ideias freireanas e defendem uma Pedagogia Crítica que repense o lugar da Educação na emancipação das pessoas”, afirma, criticando aqueles que desejam conter o legado de Paulo Freire, ressaltando que a Educação, principalmente a pública, deve ser pautada na realidade viva e significativa de cada educando.

Além disso, segundo Danilo, Paulo Freire demonstra que a alfabetização dos indivíduos está relacionado à participação política, como inserção crítica dos sujeitos na sociedade. “A quem não interessa pessoas autônomas e críticas?”, enfatiza, dizendo que políticas educacionais devam pensar uma Educação que amplie as liberdades sociais e individuais. “Por que conter algo que pode ampliar a participação das pessoas? Somente uma visão autoritária de Educação pode pensar em conter práticas influenciadas por Freire nas salas de aula”, conclui.  

Paulo Freire não está nos currículos das escolas públicas, mas, sim, como referência para aqueles que praticam pedagogia todos os dias. Algumas ONGs aplicam de fato o método freireano. É o caso do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD), que existe há 35 anos como “instituição de aprendizagem”, como se autodenomina. “Não há e nunca houve incentivo governamental para a aplicação dos ensinamentos e princípios freireanos. Isso se deve à ação isolada e alguns educadores, professores e escolas”, explica Sebastião Rocha, diretor do CPCD.

Entre outros projetos, a ONG realiza o “Ser Criança”, que pretende fazer com que o estudo esteja próximo da realidade dos alunos. “Estudar brincando, plantando, comendo, conversando, reciclando, respeitando são alguns dos muitos verbos praticados no dia-a-dia desse projeto”, diz Sebastião, contando que centenas de meninos e meninas, em horários complementares à escola formal e em espaços comunitários, recebem educação completar no CPCD em Araçuaí, em Minas Gerais, e Paulo Freire é uma das principais influências para essa e outras práticas do lugar.

Um projeto desenvolvido pelo Instituto Paulo Freire em parceria com a Samsung desde 2017, "Alfabetização Cidadã", promove a alfabetização de adultos vinculados à reciclagem em São Paulo. "Agora quero voltar para a escola, até ir para a faculdade", contou Miriam Lima à NOVA ESCOLA. "Hoje troco mensagens no Facebook". A primeira turma se formou este ano.

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