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Série 'Rompendo o Silêncio' expõe como violência ainda ronda universidade brasileira

Instituições precisam lidar com homofobia, trotes e até estupros

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São Paulo

A reação do setor cultural, de parte da intelectualidade e do movimento estudantil à guerra ideológica promovida pelo bolsonarismo contra as universidades tem um efeito colateral indesejado que vem à tona agora. Ele é menos pior que o obscurantismo, mas ainda assim negativo.

A união desses segmentos em defesa das instituições de ensino e pesquisa do país deixou em segundo plano o debate público sobre problemas importantes que persistem nelas.

Nesse sentido, a série Rompendo o Silêncio, que estreou no início do mês no canal de TV HBO e no streaming HBO Max, coproduzida com a Prodigo Filmes, é uma bem-vinda exceção, que se propõe a cumprir a missão que o nome sinaliza.

Reflexo distorcido da Praça do Relógio da USP, na Cidade Universitária, em SP
Reflexo da Praça do Relógio da USP, na Cidade Universitária, em SP - Eduardo Knapp - 20.ago.2014/Folhapress

Com cinco episódios de uma hora, a produção retrata a cada semana um aspecto da cultura de violência ainda presente em algumas instituições de ensino superior brasileiras. De trotes violentos a homofobia, assédio sexual e até estupro.

Nem todos os casos são recentes, vale ressaltar, e alguns já foram divulgados em algum momento em veículos de imprensa. Vê-los reunidos em um conjunto, porém, choca e faz pensar.

São especialmente perturbadores os relatos que envolvem as prestigiadas faculdades de medicina da USP e da Unesp. Que médicos são esses formados ao lado de colegas que naturalizam o abuso sexual, o bullying e a violência física em nome de um suposto sentimento tribal de pertencimento e superioridade?

O mergulho na vida de alguns dos personagens também traz reflexões sobre as consequências das violências que sofreram, num olhar que o noticiário quente nem sempre consegue captar. E, tanto quanto a dor e a brutalidade, chamam a atenção nos episódios a resistência e a coragem.

O mesmo não se pode dizer das reações dos dirigentes universitários retratados na série. Com poucas exceções, elas são no geral de alheamento à gravidade dos problemas.

Diante do medo de alunas de conviver com estupradores, uma reitora fala da missão educativa da universidade e um diretor se diz acuado por perguntas.

Uma cena com uma inscrição de alguns segundos informa que o então reitor da USP Marco Antônio Zago chegou a conceder entrevista para a série, mas voltou atrás na autorização concedida aos produtores.

A gestão Zago terminou há quase quatro anos, em janeiro de 2018. A informação sobre a entrevista, mesmo que não exibida, chama a atenção para o distanciamento temporal entre as gravações e a exibição dos episódios, o que causa algum ruído.

A filósofa e escritora Djamila Ribeiro, colunista da Folha por exemplo, é entrevistada como ex-secretária municipal de Direitos Humanos de São Paulo, cargo que ocupou por menos de um ano em 2016, na gestão de Fernando Haddad (PT).

Tivesse sido exibida há dois anos, a série teria saído no momento em que o então ministro da Educação Abraham Weintraub dizia que as universidades brasileiras tinham plantações extensivas de maconha, entre outros ataques descabidos.

Frases como essas, desmentidas após checagens, uniram professores, estudantes e intelectuais em geral na missão pública não só de defender, mas explicar o beabá do que faz uma universidade

Ao mesmo tempo que tal reação foi uma oportunidade para divulgar e reforçar princípios basilares pouco conhecidos por parte da população, representou também de certa forma um retrocesso, pois abafou debates importantes que começavam a ganhar projeção fora dos campi.

Enquanto Weintraub fantasiava com plantações de cânabis, as universidades passavam por intensas transformações.

Basta olhar o exemplo da USP, central na série. Em 2018, quando Zago deixou a Reitoria, 31% dos ingressantes da universidade eram de escola pública, e 19% se declaravam pretos ou pardos. Hoje, são 52% e 27,4%, respectivamente.

A mudança no perfil dos alunos é visível na profusão de coletivos que têm escancarado e problematizado questões que há pouco tempo passavam como naturais, como o racismo, o assédio e a homofobia.

“A violência é uma herança que o país traz de muitas décadas, e a série estrear neste momento, com este governo que trata a educação tão mal, é muito relevante”, diz Giuliano Cendroni, que dirige os episódios junto com Marina Person.

Ao retratar os problemas e a mobilização de estudantes para mudar a cultura de violência presente em alguns cursos e instituições, Rompendo o Silêncio faz lembrar que já passou da hora de o setor cultural e as próprias universidades perceberem que não são elas que ganham quando se deixam pautar apenas pelos ataques do outro lado.

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