Apenas 20% dos professores avaliam que modelo de estágio é ideal

Formação negligencia prática na sala de aula; docentes que estagiaram são minoria e relatam experiência burocrática e distante da realidade das escolas

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São Paulo

Não é um caso. Nem são dois ou três. Vários alunos das turmas do 6º ao 9º ano em que Luís leciona inglês já tiveram crises de ansiedade nas aulas. Ele ajuda como pode, age intuitivamente, porque, quando fez a licenciatura em Letras, não aprendeu nada sobre como lidar com os alunos. No estágio, que deveria ser a oportunidade para experimentar a prática da docência, ele tinha de ficar sentado, passivamente, vendo aulas, sem ser chamado a atuar nas atividades. Desestimulado, fez só 10% da carga horária obrigatória e conseguiu assinatura da escola para comprovar a parte restante.

Luís é o nome fictício de um professor de 34 anos da rede estadual de São Paulo. Ele pediu anonimato à Folha para falar sobre as dificuldades que enfrentou e ainda enfrenta por haver concluído a faculdade sem ter a mínima ideia da realidade das escolas e de como lidar com os desafios que surgem no cotidiano de uma sala de aula.

Essa é, infelizmente, a história da maioria dos professores no Brasil e de uma formação que, entre outros tantos problemas, negligencia a importância do estágio.

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Aula em colégio estadual da região metropolitana de São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Uma pesquisa inédita obtida com exclusividade pela Folha mostra que apenas 20% dos professores do Brasil consideram que o modelo atual de estágio é o ideal. Os estagiários muitas vezes não participam de atividades na prática e também não recebem orientação. Realizada pelo Instituto Península, que desenvolve projetos de educação com foco nos docentes, a Pesquisa Pulso 2023: Políticas Educacionais Sob a Ótica dos Professores fez entrevistas online, entre 3 de julho e 8 de agosto deste ano, com 3.029 docentes com idade média de 42,8 anos, de diferentes regiões do país.

O estudo vem à tona na sequência de outro dado alarmante sobre a formação de professores no Brasil, divulgado no final de setembro: apenas 13,7% dos formandos em licenciatura fizeram mais do que as 400 horas mínimas obrigatórias de estágio. Pouco menos de 20% cumpriram entre 301 e 400 horas de estágio e mais da metade (55%) fez somente até 300 horas. Quase 12% não fizeram nada de estágio.

Os números são de uma análise feita pela ONG Todos pela Educação com base nos questionários do último Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), aplicado em 2021. E, é bom ressaltar, essas são as cargas horárias declaradas pelos formandos —não há como mensurar os casos, como o de Luís, em que o estudante consegue a assinatura da escola sem ter cumprido a carga horária de fato. E, de acordo com a ONG, há uma percepção de que essa prática não seja rara.

Luís calcula que, de toda a sua turma –ele estudou em uma faculdade privada no interior de São Paulo–, apenas 10% tenham cumprido as 400 horas de estágio obrigatórias por lei. Segundo ele, os diretores que assinam os relatórios do estágio algumas vezes não sabem que o estudante não cumpriu toda aquela carga horária ou então, diz Luís, fingem que não sabem.

Professora da rede municipal de São Paulo, Flávia (nome é fictício), 35, diz que praticamente todos de sua turma, para se formar, pediram para professores conhecidos assinarem o estágio obrigatório sem que o tivessem cumprido. Ela e muitos colegas fizeram um estágio que, por ser remunerado, não foi aceito como o obrigatório, conta Flávia. A professora estudou pedagogia de forma semipresencial (ia à faculdade uma vez por semana) em uma universidade privada.

Flávia afirma que, embora tenham feito estágio, ela e os colegas se formaram sem saber como preparar uma aula e, mais do que isso, sem ferramentas para lidar com imprevistos e com situações em que aquilo que é preparado simplesmente não funciona.

Flávia é professora de uma turma de 25 crianças de 4 e 5 anos de idade, sendo que cinco delas são casos de inclusão (possuem algum tipo de deficiência ou outra condição que exige acompanhamento educacional especial) e não há auxiliar em sala de aula. Na formação, os planos de aula que aprendiam a fazer eram, nas palavras de Flávia, uma completa fantasia, longe do que encontrariam em uma sala de aula.

Outro dado deve ser considerado nesta triste equação da educação no Brasil: mais de 60% dos professores se formaram em EaD (educação a distância) —isso considerando os dados até pandemia, em 2020; de lá para cá, a modalidade só fez crescer, e atualmente a pedagogia é a carreira recordista no ensino a distância.

Esse aumento da formação de professores sem aulas presenciais amplia a necessidade de se pensar em uma política de estágio eficiente no país, de acordo com Heloisa Morel, diretora-executiva do Instituto Península.

Ela diz que os estagiários na educação "não são acolhidos nem tratados como protagonistas nas escolas". "Eles recebem grande quantidade de informação, com ênfase em acumular repertório teórico", afirma. Em geral, o estágio não traz esclarecimentos ao futuro docente de como aplicar, na prática, o que aprende na teoria.

Muitas vezes, segundo Morel, o estagiário tem de ficar totalmente passivo, assistindo às aulas sem ser chamado a colaborar de alguma forma —ou, pior ainda, fica fora da sala de aula, em atividades burocráticas da escola. "E é na sala de aula que o estagiário compreende e vive, de fato, o que é ser professor."

A pesquisa do Península aponta que 87,7% dos professores concordam totalmente ou parcialmente com a ideia de que o estágio só pode ser eficaz se realizado na sala de aula. Além disso, 80,8% disseram estar dispostos a receber um estagiário em sua sala de aula.

Isso revela, na avaliação de Morel, que há espaço para a implementação de uma nova política de estágios no país, com critérios para mensurar a qualidade dessa prática na formação dos futuros professores. Para isso, afirma, seria necessário estabelecer uma coordenação entre as instituições de ensino superior e as redes de ensino.

Em São Carlos, no interior de São Paulo, o Península apoiou um projeto de articulação entre as escolas do município e as faculdades da região que formam professores. A ideia foi planejar melhor a distribuição de estagiários entre as escolas. Além disso, tanto as faculdades como as escolas tinham responsabilidades no desenvolvimento e na fiscalização do programa de estágio, a fim de garantir a qualidade. O projeto também estimulava que os estagiários tivessem uma participação ativa em diferentes atividades dentro da sala de aula, em vez de ficarem apenas como observadores.

Para Luís, a formação do professor precisa estar conectada à realidade da educação no país e deveria, por exemplo, fornecer ferramentas para mediar conflitos e lidar com diferentes níveis de aprendizado em uma mesma turma.

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