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Flávia Biroli

Precisamos falar de cuidado e imaginar futuros mais justos

Tematizar o cuidado é discutir como nos organizamos como sociedade

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Flávia Biroli

Professora do Instituto de Ciência Política (UnB) e ex-presidente da Associação Brasileira de Ciência Política (2018-20); é autora, entre outros, de “Gênero e Desigualdades: Limites da Democracia no Brasil” (ed. Boitempo)

O tema da redação do Enem 2023 foi a invisibilidade do trabalho de cuidado, que é exercido sobretudo pelas mulheres. A proposta toca em algo que é preciso superar para a construção de uma sociedade mais justa: a posição desvantajosa das mulheres nas relações de trabalho. Mas vai além disso. Tematizar o cuidado é discutir como nos organizamos como sociedade, as implicações dessa organização e o que precisamos fazer para viver bem, sobretudo nos momentos da vida em que o cuidado se faz mais necessário.

Começo pelo argumento de que tratar do trabalho invisível de cuidado é jogar luz sobre a posição relativa das mulheres. Os dados sobre uso do tempo disponíveis no Brasil (IBGE) mostram que elas dedicam mais do que o dobro das horas dos homens ao trabalho doméstico e de cuidado. E isso começa desde cedo, já que é às meninas que se pede "ajuda" com a preparação do jantar, com a louça, com a roupa que precisa ser lavada, com a limpeza da casa, com os cuidados de irmãos mais novos. Elas aprendem e estabelecem conexões com algo que é importante para todos, que é a reprodução cotidiana da vida.

Mulher cuida da casa e da filha em Paraisópolis, em São Paulo - Joel Silva - 17.nov.2015/Folhapress

Mas e eles? Bem, eles têm o tempo liberado para fazer outras coisas: tempo para o lazer e os amigos, tempo para o estudo e para o trabalho, tempo para inventar outras possibilidades para suas vidas. O resultado tem sido bem palpável. Hoje, enquanto as mulheres têm em média mais estudo que os homens, o salário médio deles é superior ao delas e as taxas de desemprego e informalidade são maiores entre elas.

Mas limitar o argumento ao que acabo de dizer seria incorreto —e mesmo cínico, um cinismo típico dos privilegiados, para tomar de empréstimo a expressão usada pela cientista política Joan Tronto. Ela dá alguns exemplos. Se chegamos pela manhã a um escritório sempre limpo, pode parecer que o trabalho de limpeza é coisa simples, quase nada. Se as meias e cuecas estão sempre limpas, na gaveta, é fácil esquecer-se que alguém as lavou e guardou.

Bem, no Brasil, quem limpa o escritório, quem lava e guarda as roupas é mais frequentemente uma mulher negra. É ela, também, que encontra as maiores dificuldades para equilibrar tarefas remuneradas e não remuneradas de cuidado. Aqui, é preciso desagregar o problema. As mulheres negras são maioria entre quem realiza trabalho informal e de baixa remuneração, desempenhando tarefas reconhecidas como de cuidado ou do universo doméstico. Isso remete ao que a antropóloga Lélia Gonzalez definiu como "os diferentes modos de rejeição/integração" das mulheres negras em uma sociedade na qual o racismo e o sexismo operam conjuntamente. A segunda parte do problema é que elas encontram os maiores desafios para cuidar dos seus e para receber cuidado. A falta de creches, a baixa remuneração e a insegurança no acesso a renda limitam suas alternativas e compõem a dura realidade do "matriarcado da miséria", discutido pela filósofa Sueli Carneiro a partir da expressão do poeta negro e nordestino Arnaldo Xavier. O menor acesso a pensões e aposentadorias reduz suas garantias na velhice, compromete seu bem viver.

Assim, a responsabilização desigual pelo cuidado não libera apenas os homens. Libera, também, mulheres brancas, que podem transferir esse trabalho para outras mulheres, em sua maioria negras. É algo que os dados sobre uso do tempo, que já mencionei, demonstram: gênero, raça e classe conformam relações que são vantajosas para alguns (e algumas), cujas trajetórias se assentam sobre a exploração do trabalho de outras.

Esse não é, no entanto, o único motivo pelo qual comecei o texto dizendo que a redação do Enem vai além do problema do trabalho desempenhado, de maneira invisível, pelas mulheres. O cuidado é incontornável. Essa palavrona quer dizer coisas que conhecemos bem. Os seres humanos são frágeis ao nascer e precisam necessariamente de cuidado para sobreviver. Adoecemos, nos tornamos mais frágeis ou temos necessidades específicas de suporte ao longo de nossas vidas. E, quando temos sorte, envelhecemos a ponto de precisar do cuidado de outras pessoas. Se estes são problemas coletivos, precisamos de respostas que venham na forma de direitos e de políticas públicas. Se a resolução ficar por conta de "cada família", o resultado será necessariamente injusto. O mercado do cuidado é um recurso para alguns. E as redes de relações cotidianas, que têm configurado o trabalho reconhecido como "ajuda", para citar agora a socióloga Nadya Guimarães, têm se transformado aceleradamente.

O último Censo do IBGE mostrou que somos um país mais envelhecido e mais variado nos arranjos familiares. Temos, em média, menos filhos; vivemos, em média, mais tempo. Há, também, mais lares uniparentais. É preciso conectar esta dinâmica a outra, nem sempre discutida. As relações de trabalho são cada vez mais precárias, tornando difícil garantir os recursos, inclusive o tempo, necessário para cuidar e para receber cuidados. Vivemos o paradoxo do risco permanente da "desocupação" e da exaustão, feitas da insegurança e da imprevisibilidade das rotinas, algo que me faz pensar nos profissionais de aplicativos. Mas também da sobreposição de turnos, da falta de tempo para dormir, silenciar, o que me leva a pensar nas profissionais da enfermagem, que depois de turnos seguidos, lidam com as demandas afetivas e práticas de suas próprias casas.

Ao tematizar o trabalho invisível de cuidado, a redação do Enem propõe a milhões de jovens que pensem nas bases sobre as quais está organizada a sociedade em que vivem. Há alternativas, elas são políticas e dependem de um pensar coletivo.

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